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Pesca nos rios do Mato Grosso. Cientistas mostram que a Lei aprovada pelo governo é um erro

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Capa da revista Fish and Fisheries.

Texto originalmente publicado em 4 de setembro de 2024

TRADUÇÃO DO ARTIGO:

Fernando AME, Lopes DA, Mateus L, Penha J, Súarez YR, Catella AC, Nunes AV, Arenhart N & Chiaravalloti RM. 2024. The economic displacement of thousands of fishers in the Pantanal, Brazil: A telling story of small-scale fisheries marginalization worldwide. Fish and Fisheries, doi: 10.1111/faf.12856

A exclusão de milhares de pescadores no Pantanal, Brasil: uma história reveladora da marginalização da pesca de pequena escala em todo o mundo

Adriana Maria Espinoza Fernando¹, Douglas Alves Lopes², Lúcia Mateus³, Jerry Penha³, Yzel Rondon Súarez4, Agostinho Carlos Catella5, André Valle Nunes6,7, Neusa Arenhart8 and Rafael Moraes Chiaravalloti9,7

¹Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Conservação, Instituto de Biociências, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Cidade Universitária, Av. Costa e Silva, Pioneiros, Campo Grande, MS, 79070-900, Brazil.

²Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade, Departamento de Ciências Biológicas, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Rua Cristóvão Colombo, 2265, Jardim Nazareth, São José do Rio Preto, SP, 15054-000, Brazil.

³Laboratório de Ecologia e Manejo de Recursos Pesqueiros, Instituto de Biociências, Universidade Federal de Mato Grosso, Av. Fernando Correa da Costa, 2367, Boa Esperança, Cuiabá, MT, 78060-900, Brazil

4CERNA – Centro de Estudos em Recursos Naturais, Laboratório de Ecologia, Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Rod. Dourados-Itahum, 12, Dourados, MS, 79804-970, Brazil

5Embrapa Pantanal, Rua Vinte e Um de Setembro, 1880, Corumbá, MS, 79320-900, Brazil

6Knowledge Center on Biodiversity, Belo Horizonte, MG, 31270-901, Brazil

7IPÊ – Institute for Ecological Research, Nazaré Paulista, Rod. Dom Pedro I, Km 47, Nazaré Paulista, SP, 12960-000, Brazil

8Secretaria de Meio Ambiente do Estado de Mato Grosso, Centro Político Administrativo, Cuiabá, MT, 78049-913, Brazil

9University College London, Department of Anthropology, 14 Taviton St, London WC1H 0BW, United Kingdom

Correspondence author: Rafael Moraes Chiaravalloti, r.chiaravalloti@ucl.ac.uk

Rafael Chiaravalloti.

 

Resumo

Uma nova política no Pantanal, no Brasil, visa deslocar economicamente milhares de pescadores artesanais de um terço da região. Uma atividade de 5.000 anos na região. A legislação desconsidera vários princípios orientadores das Diretrizes Voluntárias da FAO para Garantir a Sustentabilidade na Pesca de Pequena Escala (diretrizes SSF). Considerando que 2024 marcará o 10º aniversário dessas diretrizes, essa política representa um retrocesso significativo para os peixes e a pesca em todo o mundo. Neste artigo, mostramos que a legislação faz parte de uma agenda de longo prazo contra os pescadores de pequena escala no Pantanal, com o objetivo de usar narrativas sobre a pesca excessiva para justificar deslocamentos físicos e econômicos, embora não haja evidências empíricas que mostrem o impacto sobre os estoques de peixes. Também mostramos que, como em muitas outras pescarias de pequena escala em todo o mundo, as narrativas sobre a sobrepesca são, de fato, usadas para abrir espaço para atividades industriais e grandes projetos de infraestrutura. A nova legislação provavelmente abrirá espaço para a construção de mais de 50 pequenas barragens hidrelétricas no Pantanal e arredores. Argumentamos que, em primeiro lugar, é urgente abolir a nova legislação no Pantanal e mudar a agenda contra os pescadores locais. Além disso, é fundamental implementar programas internacionais que celebrem e apoiem a pesca local, como transformar as diretrizes da SSF em acordos internacionais, implementar programas de ciência cidadã e expandir os direitos de posse dos pescadores por meio de mecanismos inovadores de propriedade. Ao proteger melhor os pescadores locais de pequena escala no Pantanal e em todo o mundo, teremos mais chances de garantir um futuro sustentável para os ecossistemas e seus povos.

Palavras-chave: conservação, represas, planície de inundação, gestão de água doce, governança, pesca artesanal

 

Introdução

Em março de 2024, o governo do Estado que abriga o Pantanal Norte aprovou uma nova legislação que proíbe o transporte, o armazenamento e a venda de cinco espécies de peixes migratórios de longa distância por cinco anos (lei nº 12434/2024, estado de Mato Grosso). Essas espécies representam 44% de toda a captura comercial da pesca de pequena escala na planície pantaneira, e isso terá um impacto direto em um terço da região e afetará milhares de pescadores que dependem da pesca como seu principal meio de vida (ANA, 2020). A legislação foi implementada sem a participação, consulta ou acordo dos pescadores. Ao praticamente proibir metade de todas as atividades de pesca no Pantanal Norte, a legislação desconsidera vários princípios orientadores das Diretrizes Voluntárias da FAO para Garantir a Sustentabilidade na Pesca de Pequena Escala, como consulta e participação, abordagens holísticas e integrativas e responsabilidade social, entre outros (FAO, 2015). Considerando que 2024 marca o 10º aniversário dessas diretrizes, essa política representa um retrocesso significativo para os peixes e a pesca em todo o mundo. Neste artigo, nosso objetivo é destacar o impacto generalizado da legislação no Pantanal, sua relação com as práticas de pesca sustentável e seu contexto dentro da agenda internacional para a pesca de pequena escala.

 

Peixes do Pantanal

O Pantanal é uma grande planície de inundação situada na Bacia do Alto Paraguai (UPRB), caracterizada por uma variação de altitude de até 200 metros entre a planície de inundação e o platô circundante (Figura 1) (Junk et al., 2011). Anualmente, as espécies de peixes migratórios viajam centenas de quilômetros para deixar a planície de inundação e ocupar o planalto circundante para desovar (Ziober et al., 2012). Após a reprodução, os adultos e os jovens retornam à planície de inundação para crescer (Sousa et al., 2023).

A abundância e a distribuição da população de peixes estão diretamente relacionadas a um pulso de inundação anual nas direções norte-sul e leste-oeste na região (Junk et al., 2011).  A inundação leva até três meses para atravessar todo o Pantanal, cobrindo entre 10% e 80% da planície de inundação, dependendo do ano (Hamilton et al., 1996). Quanto maior o pulso de inundação, mais peixes poderão sobreviver no ano seguinte (Welcomme, 2001). Além disso, o pulso de inundação móvel significa que as janelas de recrutamento mudam ao longo de um gradiente espaço-temporal (Resende, 2011).

Figure 1. Diferentes usos na Bacia do Alto Paraguai e no Pantanal por povos indígenas e comunidades locais e outras atividades ligadas à pesca. Fonte de dados para o mapa: (ANA, 2020).

 

Pescadores no Pantanal

A pesca faz parte dos meios de subsistência do Pantanal desde os primeiros habitantes da região. Registros arqueológicos mostram que as redes de pesca são usadas no Pantanal há pelo menos 5.000 anos (Peixoto, 2009). Espinhas de peixe e artefatos de peixe são frequentemente encontrados em sítios indígenas em todo o Pantanal, demonstrando a relação histórica íntima entre a população local e os peixes (Peixoto & Silva, 2017).

Atualmente, existem categorias de pesca artesanal e recreativa na região. A pesca artesanal é dividida em coleta de iscas, pesca comercial e pesca de subsistência. Todas as categorias são classificadas como pesca de pequena escala, pois os pescadores só podem usar varas de pesca; não são permitidas redes de pesca ou outros instrumentos de pesca (Chiaravalloti, 2017).

As atividades de pesca comercial se desenvolveram no Pantanal após a década de 1970 e é uma categoria de trabalho formal na legislação brasileira, com 90% dos moradores das comunidades ribeirinhas registrados como pescadores (Chiaravalloti, 2019; Chiaravalloti et al., 2022; Mattos et al., 2024). Durante esse período, uma combinação de grandes enchentes, a adoção de novas tecnologias de armazenamento de peixes (caixas de gelo e freezers) e o estabelecimento de empresas de processamento de peixes permitiram que os pescadores expandissem suas atividades e começassem a comercializar peixes (Mateus et al., 2011). As pessoas registradas como tal têm direito a receber um benefício financeiro (salário mínimo brasileiro por mês) do governo durante o período de defeso da pesca entre outubro/novembro e janeiro/fevereiro (conhecido localmente como “Piracema”) (Mattos et al., 2024). Atualmente, há cerca de 8.000 pessoas registradas como pescadores comerciais no Pantanal e arredores, capturando mais de 5.000 toneladas de peixes e gerando uma renda anual de mais de US$ 12 milhões (ANA, 2020). Noventa por cento dos peixes capturados são espécies migratórias de longa distância (acima de 100 km), como o sorubim/pintado (Pseudoplatystoma corruscans), o pacu (Piaractus mesopotamicus), o piavuçu (Megaleporinus macrocephalus) e o jaú (Zungaro jahu) (Catella, 2003). Os Povos Indígenas e Comunidades Locais (IPLCs) do Pantanal são classificados, em sua maioria, como pescadores comerciais, embora alternem entre pesca comercial, de subsistência e coleta de iscas, dependendo da demanda, da oportunidade e das ferramentas disponíveis (Chiaravalloti, 2019). Os pescadores artesanais geralmente estão ligados a associações de pescadores, chamadas localmente de “Colônia de Pescadores”, que os ajudam a reunir a documentação para acessar os benefícios do período de defeso da pesca (Figura 1) (Nunes et al., 2023).

A pesca recreativa também aumentou na década de 1970 como consequência de grandes enchentes e da expansão das redes de transporte (ou seja, rodovias e aeroportos). O número de turistas que vinham pescar no Pantanal atingiu o pico na década de 1990, com mais de 100.000 turistas visitando o local a cada ano (Catella, 2003). No entanto, esse número caiu para 30.000, possivelmente devido à abertura de novos locais de pesca no país e a uma série de pequenas inundações no Pantanal (Catella et al., 2020). O crescimento da pesca recreativa levou a um aumento da demanda por iscas vivas, levando muitas famílias locais a capturar espécies pequenas como a tuvira (Gymnotus spp.) e o caranguejo do Pantanal (Dilocarcinus pagei) para vender como isca para turistas (Moraes & Espinoza, 2001).

Pesquisas recentes identificaram uma “fronteira difusa” que pode existir entre a pesca de subsistência e a pesca recreativa, que normalmente é praticada na margem ou em plataformas de madeira e não está associada a empresas de turismo (Massaroli et al., 2021; Nyboer et al., 2022). Em geral, são pescarias mais baratas e rápidas, com a captura sendo consumida com frequência e desempenhando um papel fundamental na nutrição da população local (ANA, 2020). Há aproximadamente 1,4 milhão de pessoas envolvidas nessa atividade na região, gerando mais de US$ 250 milhões por ano (ANA, 2020).

 

Há pesca excessiva no Pantanal?

As avaliações científicas dos estoques de peixes no Pantanal e nas regiões vizinhas foram realizadas principalmente durante a década de 1990 e no início dos anos 2000. Os dados sugeriram uma possível sobrepesca do pacu (P. mesopotamicus), mas nenhuma outra espécie apresentou sinais de esgotamento do estoque (Mateus et al., 2011). Mais recentemente, uma avaliação dos dados do Sistema de Controle de Pesca do Estado do Mato Grosso do Sul (que inclui dois terços do Pantanal e analisa os dados de pescadores artesanais e recreativos) de 2004 a 2016 mostrou estabilidade na captura mediana mensal por unidade de esforço (kg por pescador por dia) e no desembarque anual de espécies migratórias; em outras palavras, nenhum sinal de impacto (Araujo et al., 2020). Também foram realizados estudos mais localizados; uma avaliação de uma área central do Pantanal usada para pesca comercial, de subsistência e recreativa mostrou que a região tem níveis “excelentes” de integridade biológica das assembleias de peixes (Polaz et al., 2017).

Também foram realizados estudos sobre medidas de manejo que podem proteger os peixes da pesca excessiva. Por exemplo, os pescadores de uma comunidade no Pantanal Sul pescam juntos e alternam o uso de áreas de pesca, permitindo que áreas inexploradas se restabeleçam (Chiaravalloti, 2017). No Pantanal Norte, no estado do Mato Grosso (MT), os pescadores de uma comunidade estabelecem áreas de pesca claras para cada família ao longo do rio, o que protege contra possíveis parasitas e superexploração (Catella et al., 1997).

 

Políticas de (des)pesca no Pantanal

Apesar da falta de evidências de um possível impacto sobre os estoques de peixes do Pantanal por parte dos pescadores, tem havido uma narrativa generalizada de sobrepesca (Chiaravalloti et al., 2022). Na década de 1980, quando a pesca recreativa começou a crescer, os operadores turísticos começaram a pressionar os formuladores de políticas para reduzir a cota de captura e o transporte da pesca comercial (Catella, 2003; Franco et al., 2013). Desde então, várias legislações foram implementadas impondo restrições de entrada e saída, especialmente para os pescadores comerciais. Entre 1983 e 1994, várias leis foram aprovadas proibindo o uso de todas as redes de pesca na região e, em 2014, o número de varas de pesca que os pescadores profissionais podem usar ao mesmo tempo foi reduzido à metade (Catella, 2003). Os tamanhos mínimo e máximo dos peixes e as cotas restritivas aumentaram para todas as principais espécies (Catella et al., 2020). Também houve relatos de deslocamento físico e econômico de pescadores. Áreas estritamente protegidas foram criadas na fronteira oeste do Pantanal, restringindo o acesso a importantes áreas de pesca para centenas de pescadores (Chiaravalloti, 2019). A legislação que proíbe metade de toda a pesca comercial no Pantanal Norte, implementada em 2024, é a mais recente dessa série de políticas contra os pescadores comerciais.

 

Culpando a pessoa errada

As evidências que apontam para a ausência de sobrepesca generalizada no Pantanal não implicam que os peixes não estejam ameaçados na região. Pelo contrário, existem ameaças significativas aos peixes que representam grandes riscos à sustentabilidade de longo prazo dos estoques pesqueiros (Tomas et al., 2019). No entanto, não são os pescadores comerciais do Pantanal que devem ser culpados.

Primeiro, os projetos de infraestrutura que alteram a dinâmica hidrológica já estão afetando a ictiofauna da região. Dezenas de pequenas hidrelétricas e algumas grandes barragens foram construídas em rios que drenam para o Pantanal (Tortato et al., 2022). Em 2017, havia 47 represas em operação (Zanatta & Maciel, 2020). Um estudo recente mostrou que 30% das barragens propostas para a região do entorno do Pantanal estão localizadas nas principais rotas migratórias de peixes (Figura 2) (Medinas de Campos et al., 2020). Ao mesmo tempo, uma nova hidrovia que cruza todo o Pantanal já está em construção (Girard et al., 2024). O projeto visa expandir o transporte através do rio, aprofundando e alargando o rio Paraguai (o rio mais importante do Pantanal) (Figura 2). Os possíveis impactos da hidrovia vão desde a redução da extensão das inundações e mudanças na dinâmica hidrológica até a perda de serviços socioecossistêmicos (Wantzen et al., 2024).

Figure 2. Principais ameaças ao meio ambiente e à ictiofauna na Bacia do Alto Paraguai e no Pantanal. Os triângulos representam os 30% das barragens em zonas de conflito de uso localizadas em rotas de migração de peixes e regiões utilizadas pela pesca comercial. Pontos críticos e regiões que exigiriam dragagem frequente e, em alguns casos, remoção de rochas para a Hidrovia Paraguai-Paraná. Pontos de ocorrência de Cichla kelberi e Cichla piquiti em todo o Pantanal. Fonte de dados para o mapa: (ANA, 2020; EVTEA, 2015; GBIF, 2023ab).

A presença de espécies invasoras é outra ameaça significativa à pesca no Pantanal. Pelo menos dez espécies invasoras de peixes, três das quais são usadas na pesca recreativa, como o tucunaré (Cichla piquiti) (Figura 2), a pirarara (Phractocephalus hemiliopterus) e o tambaquí (Colossoma macropomum), foram encontradas no Pantanal (Tomas et al., 2019). A presença dessas espécies pode representar uma séria ameaça aos peixes nativos, com impactos na competição por recursos, predação e introdução de parasitas ou patógenos no ambiente (Lymbery et al., 2014).

A mudança climática também está afetando a pesca local no Pantanal. A frequência e a intensidade de eventos climáticos extremos na região pioraram nos últimos anos (Marengo et al., 2016). Por exemplo, em 2019, o Pantanal teve um dos anos mais secos já registrados, com incêndios florestais destruindo cerca de 30% do Pantanal (Libonati et al., 2020). Embora os peixes em si não tenham sido diretamente afetados pelo fogo, a destruição de grande parte da floresta ribeirinha afetou muitas espécies frugívoras importantes para a pesca na região (Araujo et al., 2020). As previsões climáticas apontam para uma redução da extensão das inundações e mudanças na hidrologia do Pantanal (Marengo et al., 2016), com impactos negativos sobre os peixes e a pesca (Peluso et al., 2022).

Outras ameaças, como poluição doméstica e industrial, pesticidas, desmatamento, sobrecarga de nutrientes da agricultura (fertilizantes e gado) e assoreamento dos rios, também estão presentes. Embora individualmente possam não parecer ter um grande impacto, a combinação desses fatores, além das mudanças climáticas, mudanças na hidrologia e espécies invasoras, pode afetar seriamente os estoques de peixes e prejudicar a pesca no Pantanal (Tomas et al., 2019).

 

Por que culpar os pescadores por algo que não é culpa deles?

Infelizmente, a agenda política do Pantanal contra os pescadores de pequena escala faz parte de uma questão mais ampla em que a pesca de pequena escala em todo o mundo é marginalizada (Béné, 2003; FAO, 2014). Essas pescarias frequentemente enfrentam deslocamentos físicos e econômicos sob narrativas em torno da ineficiência e da pesca excessiva (Cohen et al., 2019). Embora as Diretrizes Voluntárias da FAO para Garantir a Sustentabilidade na Pesca em Pequena Escala tenham marcado um passo importante em direção a uma gestão mais participativa e inclusiva da pesca em pequena escala (FAO, 2015), quase uma década após sua publicação, as violações de direitos e questões legais persistem (exemplos em (Nakamura et al., 2024)). A legislação do Pantanal é um exemplo revelador disso.

A legislação que proíbe a pesca no Pantanal Norte foi proposta logo depois que a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico do Brasil bloqueou a expansão de 47 para mais de 100 pequenas represas hidrelétricas nas áreas circundantes do Pantanal. A agência argumentou que as barragens afetariam as rotas migratórias dos peixes e, consequentemente, os pescadores locais, o que contraria a Política Nacional de Recursos Hídricos no Brasil (lei nº 9433/1997) (ANA, 2020). Assim, ao deslocar economicamente os pescadores, a nova legislação poderia, em princípio, criar espaço para a expansão de pequenas centrais hidrelétricas. Em outras palavras, a legislação que proíbe metade de toda a pesca comercial no Pantanal Norte pode abrir espaço para projetos de infraestrutura que realmente colocam em risco a saúde de todo o Pantanal e de seus povos (Figura 3).

Figure 3. “Retrato instantâneo” do cenário atual da pesca de pequena escala no Pantanal, Brasil. A figura destaca a importância de considerar todos os fatores que podem influenciar a variação na produção de peixes no gerenciamento da pesca na Bacia do Alto Paraguai (UPRB).

Situações semelhantes foram observadas em outras pescarias de pequena escala. No rio Rufiji, um deslocamento físico de IPLCs na Tanzânia abriu caminho para a construção de uma grande barragem destinada à produção de energia hidrelétrica (Hoag & Öhman, 2008). Os casos de violações de direitos humanos e violência contra pescadores na região são generalizados (Moreau & Garaway, 2018). Na Amazônia, o papel de muitos pescadores de pequena escala na economia local foi parcialmente ignorado na avaliação do possível impacto das barragens hidrelétricas na região, o que minimizou o impacto previsto das barragens, facilitando a aprovação do governo e evitando as medidas de compensação social e econômica necessárias para os pescadores (Doria et al., 2018). Em resumo, os pescadores de pequena escala estão frequentemente na frente de políticas de desenvolvimento de cima para baixo, como barragens e hidrovias (Allison & Ellis, 2001; Cohen et al., 2019). Ao criar narrativas sobre a pesca excessiva, grupos poderosos justificam facilmente deslocamentos físicos e econômicos que abrirão espaço para atividades industriais que frequentemente afetam toda a sustentabilidade do ecossistema.

 

Conclusão

A nova legislação no Pantanal que proíbe a pesca de mais de 40% das espécies capturadas por pescadores comerciais ameaça uma atividade de 5.000 anos na região (Peixoto & Silva, 2017), que sustenta a subsistência de milhares de pessoas. A sustentabilidade só pode ser alcançada com a participação e o respeito de todas as partes interessadas na paisagem. É fundamental implementar programas de co-gerenciamento e corresponsabilidade na região. Os pescadores devem sempre ser incluídos nas discussões e decisões sobre objetivos de gestão, coleta de dados, avaliações de pesca e medidas de gestão para garantir o sucesso da pesca local (Berkes, 2009). A legislação de cima para baixo, baseada em evidências não empíricas, sempre condenará a pesca de pequena escala a baixos rendimentos e ao colapso (Chuenpagdee et al., 2024).

Para apoiar melhor os pescadores locais de pequena escala no Pantanal e em todo o mundo, argumentamos que, em primeiro lugar, as Diretrizes Voluntárias da FAO para Garantir a Sustentabilidade na Pesca de Pequena Escala devem se tornar uma convenção internacional sobre como os países devem abordar a pesca de pequena escala. Abordagens semelhantes foram adotadas para os IPLCs por meio da Convenção Internacional do Trabalho 169 e da Convenção sobre Diversidade Biológica, em que os países foram convidados a aderir às metas acordadas sobre os direitos dos IPLCs e a biodiversidade, respectivamente (Convenção sobre Diversidade Biológica, 2022; OIT, 2017). Uma convenção internacional, por exemplo, proporcionaria aos pescadores de pequena escala uma plataforma global para defender seus direitos, a equidade, o respeito cultural e os direitos das mulheres e dos povos indígenas. Ela também ajudaria a bloquear legislações prejudiciais, como as novas restrições de pesca no Pantanal Norte.

O segundo aspecto é a participação. É fundamental incluir as vozes dos pescadores nos processos de tomada de decisão (Reed, 2008). Os pescadores, que vivem e entendem melhor seu ambiente, geralmente são ignorados. A implementação de programas que permitam que os pescadores participem da produção de conhecimento e da tomada de decisões é uma etapa fundamental para a equidade e a sustentabilidade. Atualmente, várias ferramentas de ciência cidadã permitem que não cientistas contribuam com a coleta de dados e a criação de conhecimento (Skarlatidou & Haklay, 2021). Os pescadores precisam representar suas necessidades, percepções e a dinâmica ecológica que vivenciam para garantir a sustentabilidade. Um programa internacional de ciência cidadã que permita aos pescadores coletar e armazenar dados lhes daria voz e poder nas principais decisões sobre práticas de pesca.

O terceiro aspecto são os direitos de posse. Muitos casos de deslocamento físico e econômico decorrem da falta de direitos de posse seguros para os pescadores (Robinson et al., 2018). Sua mobilidade, meios de subsistência flexíveis e estratégias frequentemente sazonais de uso e acesso a recursos não se encaixam perfeitamente nos regimes de propriedade convencionais (Chiaravalloti et al., 2017). São necessários novos arranjos de posse para permitir que os pescadores garantam seus direitos e, ao mesmo tempo, se adaptem à dinâmica ambiental, social e econômica. Por exemplo, as reservas sazonais de polvo na África Oriental recuperaram muito os ecossistemas e, ao mesmo tempo, garantiram os níveis de nutrição local (Willer et al., 2023). Esses arranjos permitem que os direitos de posse dos pescadores se alinhem à dinâmica ecológica. Paisagens de trabalho ou outras medidas eficazes de conservação baseadas em áreas vão nessa direção (Bennett et al., 2022).

Em resumo, os pescadores do Pantanal enfrentam sérias ameaças. Metade de todas as espécies de pesca comercial foi proibida em um terço do Pantanal, enquanto as verdadeiras causas da pesca e dos impactos ambientais na região – como novos projetos de infraestrutura, espécies invasoras e mudanças climáticas – permanecem sem solução e, em alguns casos, são até promovidas como desenvolvimentos positivos. Infelizmente, esse é apenas um exemplo das muitas políticas que afetam negativamente os pescadores de pequena escala em todo o mundo. É necessária uma mudança urgente na agenda focada em acordos internacionais, monitoramento participativo e direitos de posse para proteger os pescadores locais e os ecossistemas dos quais eles dependem.

 

Agradecimentos

Agradecemos à Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul (FUNDECT) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio a este estudo e pelo fornecimento da bolsa de pós-graduação à AMEF (88887.838156/2023-00) e ao DAL (88887.817857/2023-00). Também somos gratos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelas bolsas de produtividade para YRS. Agradecemos à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) por fornecer os dados usados para criar os mapas deste estudo. Este estudo foi parcialmente financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (para AVN, 160547/2023-7). Agradecemos imensamente os comentários dos revisores anônimos e do Editor, que melhoraram substancialmente este estudo.

 

Declaração de disponibilidade de dados

Os dados usados para criar os mapas são públicos e estão disponíveis por meio dos links para suas respectivas citações.

 

Declaração de interesse

Não há interesses conflitantes.

 

Referências

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6 Comments

  1. E incrível observar o contorcionismo, que por conveniência apelidam de ciência, para atacar aqueles que ousam criar leis que defenda os peixes do Pantanal.
    Tem capacidade até se dizer que a lei que protege para não pescá-los será ruim pra eles.
    Fico imaginando. Será se em não sendo pescados eles vão se sentirem reprimidos? Irão cometer suicídio?
    Mercador transvestido de cientista!
    Só pode estar recebendo da indústria, destruidora, pesqueira para produzir um documentário tão criminoso para com estoque de peixes do Pantanal.
    Essa tal de pesca de pequena escala que tanta fala, tem destruído tudo, visando apenas o lucro!
    E o da pior, escravizando os pescadores ribeirinhos!
    Tem que proibir essa pesca predatória e por, pelo menos, 20 anos!

  2. Madeireiro garimpeiro tambem é uma atividade de séculos iqual aos pescadores.
    Porque so pescador tem direito de explorar,
    Se todos so exploram a natureza.
    Sou a favor da proibição sim

  3. Pesco esportivamente no MT desde 1996
    Com todo respeito ao artigo e aos Drs .que o escreveram , a minha experiência pessoal é completamente diferente do que foi mostrado.
    Concordo com as leis que estão sendo incrementadas
    Deveriam ser mais duras.
    Pescadores profissionais estão acabando com os peixes dos Mato Grossos., Sul e Norte.
    Sou testemunha ocular do que falo.

  4. Assim como não se pode viver de caça…tbm não se pode viver de peixe dos rios….já não tem mais peixes. Nos rios de MT .. tá odos falam em pesca de subsistência..porém. Os pescadores vai nos rios e pegam tudo que podem…não existe fiscalização!! Os caras transportavam Toneladas de peixes…. Sem fiscalização….hj não tem mais. E. Jamais podem segurar essa pesca. Quer viver de pescado. Vão criar peixes…..

  5. Quem vai lá para passar um final de semana e se divertir é fácil falar. Quem mora na barranca do rio e vive dele a séculos, é quem está sofrendo as consequências

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