“Talvez ele nunca tenha sabido quantas famílias salvou no Pantanal, quantas vidas transformou, quantas pessoas resgatou a dignidade. Foi um verdadeiro herói pantaneiro”. É assim que André Luiz Siqueira, diretor presidente da Ecoa, relembra do amigo Mário Sérgio Sobral Costa, também conhecido como Marinho.
O arquiteto faleceu em abril deste ano e, por muitos anos, atuou como superintendente da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) no Mato Grosso do Sul, função que ocupou por nove anos. Foi também um grande aliado da Ecoa na busca por direitos de comunidades tradicionais do Pantanal.
Seu nome surgiu recentemente em conversas entre nossa equipe. Falávamos sobre a oportunidade de aproveitar a Semana do Meio Ambiente para valorizar quem luta em defesa do Pantanal. A partir da conversa, a conclusão unânime foi que não havia ninguém melhor do que Marinho para ser homenageado por nós nessa data.
Luta é provavelmente a melhor palavra para sintetizar o imenso trabalho que Marinho realizou para defender essas comunidades e o próprio Pantanal. Foi dele a ideia de aplicar na realidade pantaneira o Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS). O documento concede permissão para que essas pessoas vivam em territórios da União e façam uso sustentável dos seus recursos naturais.
Apesar de possuírem uma ligação ancestral e viverem há diversas gerações nesses locais, diversas comunidades ribeirinhas eram constantemente ameaçadas de expulsão, em alguns casos com aplicação de violência direta. Tais situações eram acompanhadas de perto pela Ecoa.
A falta de um documento para comprovar a ligação com o território era justamente a principal vulnerabilidade utilizada por quem tentava expulsar os ribeirinhos de onde viviam. É aqui que entra o ponto central do trabalho implementado por Marinho: o TAUS é também uma estratégia para proteger essas comunidades e garantir seu direito de permanecer no local.
Os trabalhos de levantamento de TAUS no Pantanal pelo SPU-MS começaram em 2006. O primeiro lugar fiscalizado foi o Porto da Manga, há cerca de 70km de Corumbá, (MS).
Nos anos seguintes, o trabalho promovido pelo SPU foi expandido com apoio da Ecoa e organizações como Ministério Público Federal e a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, câmpus Pantanal. Assim, ao longo dos anos, a documentação foi emitida para mais de 150 famílias em comunidades com estruturas fundiárias confusas ou ameaçadas de expulsão.
Defensor de famílias pantaneiras
Um exemplo emblemático onde a atuação de Mário Costa à frente do SPU foi fundamental é o da comunidade Barra de São Lourenço, formada principalmente por descendentes de indígenas Guató.
Os ribeirinhos vivem em uma pequena área na região da Serra do Amolar, na foz entre rio Cuiabá e à margem do rio Paraguai, cercados por reservas de propriedades particulares. Com o discurso de conservar a natureza, os responsáveis pelas reservas impediam os moradores locais de pescarem na região e até a transitar no rio Paraguai. Assim, cerceavam os direitos de uma comunidade tradicional historicamente ligada ao Pantanal.
Em 2012, ao tomar conhecimento da situação, Marinho esteve à frente do extensivo trabalho de garantia de direitos dessas pessoas. Juntamente com o MPF, o SPU realizou a emissão de TAUS para as 27 famílias que compõem a comunidade.
Posteriormente, em uma ação inédita, a comunidade também recebeu o TAUS coletivo de dois locais: Aterro do Binega e Aterro do Socorro. Este último era de uso ancestral, utilizado pelos antepassados dos atuais moradores da Barra de São Lourenço. No passado, por ser uma área mais alta, era para lá que os ribeirinhos migravam em épocas de cheia.
Apesar dessa área pertencer à União, proprietários de reservas particulares da região proibiam os ribeirinhos de se mudarem para a pequena ilha. Com a proibição, em algumas cheias extraordinárias que aconteceram no Pantanal, os moradores chegaram a ficar dentro das casas alagadas, em cima de girais, por não ter para onde ir.
O processo para a comunidade ter acesso à áreas até então proibidas foi iniciado a partir de 2013, com o trabalho liderado por Mário.
Nos anos seguintes, seguindo os passos do SPU, outras importantes instituições passaram a estar presentes na Barra de São Lourenço. Em 2015, aconteceu a audiência pública liderada pela juíza federal Raquel Domingues TRF-3 com intuito de mediar o conflito entre as áreas protegidas e a comunidade. A partir da audiência, o MPF judicializou a questão e, por fim, a população local pôde ter permissão para praticarem pesca e coleta de iscas em áreas próximas àquela ocupada pela comunidade.
Ainda no trabalho exercido em parceria com Ecoa, Marinho atuou com sua expertise em arquitetura na elaboração do projeto das Casas Adaptadas para eventos climáticos extremos destinada à comunidades tradicionais do Pantanal. O projeto chegou a ser finalista do Prêmio Mundial de Habitações em 2019.
Outra ação importante de ser relembrada é a participação ativa do arquiteto na articulação entre várias entidades e Governo do Estado para obtenção de fundos que seriam destinados para uma nova escola na Barra de São Lourenço.
Por sua extensa atuação e dedicação à luta em defesa dos povos tradicionais do Pantanal, Mário chegou a sofrer diversas represálias. “Ele trouxe o SPU para um papel de protagonismo na causa, trouxe essa ferramenta que salva vidas que é o TAUS“, conta André Luiz Siqueira.
Intelectual, justo e extremamente humano são algumas das características citadas pelo diretor Presidente da Ecoa para definir Marinho. Era também um grande fã da poesia, em especial da obra de Manoel de Barros. Assim como o grande poeta, que encontrava na beleza do Pantanal a inspiração para tecer com as palavras, o trabalho de Mário Costa também era motivado pela ligação que possuía com a região e os povos que ali habitam.
Era, acima de tudo, um apaixonado pelo Pantanal.
“No Pantanal não se pode passar régua
sobre muito quando chove.
Régua é existidura de limites e o Pantanal não tem limites.
Aqui, bonito é desnecessário. Beleza e glória das coisas o olho que põe”.
Manoel de Barros, poeta