As mãos calejadas são cuidadosas ao manusear as pequenas mudas que um dia serão árvores frondosas. São mãos de mulheres acostumadas a lidar com a terra, com a necessidade de equilibrar a delicadeza e a força, características importantes na árdua tarefa de restaurar áreas degradadas no Pantanal.
O plantio de mudas nativas é uma das etapas do projeto “Restauração Estratégica e Participativa no Pantanal”, que acontece na Área de Proteção Ambiental (APA) Baía Negra, em Ladário (MS). A iniciativa é coordenada pela Ecoa com o apoio do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (FUNBIO) e do projeto “Restauracción”, que conta com o apoio do Serviço Florestal Canadense. A ação aconteceu entre os dias 31 de janeiro e 03 de fevereiro.
Na atividade, o protagonismo das mulheres é um fator que chama atenção. Debruçadas sobre a terra, elas depositam no solo mudas de plantas como tarumã, cerejeira, piúva e aroeira.
Ao todo, cerca de quatro mil mudas foram plantadas em áreas degradadas pela mineração, deposição de lixo e incêndios, assim como pelo avanço da leucena, uma planta exótica e invasora.
A primeira a tomar iniciativa de começar o plantio é Zilda Nascimento, de 53 anos. Agricultora, pescadora, extrativista, mãe, ribeirinha e liderança são alguns dos adjetivos que podem ser utilizados para apresentá-la. Em uma curta troca de palavras com dona Zilda, é possível perceber o prazer que encontra na lida com a terra.
“Se todo mundo tivesse a compreensão da importância de cuidar da natureza, o mundo seria bem melhor. Eu aprendi desde criança que você pode conviver com as coisas. Lá onde nós estamos plantando antigamente era um lixão. Agora essas árvores vão crescer e ficar muito lindas. Isso é bom para os bichos, porque ali é um lugar para eles morarem e viverem tranquilos”.
A ligação com a terra é um dos valores que Zilda se esforça para deixar para seus dois filhos, Naiara, de 13 anos, e Diego, de 10 anos. A presença da família é constante em oficinas, palestras, cursos, assembleias e outras atividades promovidas neste e em outros projetos. Atentos, aprendem a ciência por trás do conhecimento que já sabiam na prática.
A filha mais velha de Zilda também quis participar ativamente de todas as atividades necessárias para o plantio, da abertura de caminho até o plantio efetivo das mudas. Alta para sua idade, Naiara parecia empolgada e não demonstrava cansaço. Seu raciocínio rápido e a firmeza no modo de falar também a fazia parecer ter bem mais do que seus 13 anos de idade.
“Desde o começo eu me interessei por restaurar e quero fazer com que outras pessoas se interessem também. Minha mãe sempre me ensinou que se destruímos o que está na nossa volta, estamos destruindo a nós mesmos, que se eu destruir, eu não vou ter mais. A gente se sente mais leve sabendo que o que estamos fazendo, de plantar, vai melhorar o mundo daqui um tempo”.
É com orgulho que Zilda fala sobre sua filha. Vê em seu caminho possibilidades que ela mesmo não pode trilhar. “Eu como mulher sempre sou muito caprichosa, muito pé firme. A minha filha também, até mais do que eu, ela é novinha e já sabe das coisas. O estudo que ela tem, eu não tive a oportunidade de ter. Mas minha filha está estudada e se Deus quiser vai fazer faculdade”.
Restaurar é ainda mais importante para Zilda e sua família ao se levar em conta o terror que viveram durante os incêndios de 2020. Na época, quase 60% da área total da APA Baía Negra foi devastada. Segundo o Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dos seis hectares da APA, três e meio pegaram fogo.
Do quintal, Zilda viu o fogo se aproximar e devorar sua roça, destruir as grandes árvores da região e chegar perto da sua casa.
“Foi uma coisa muito triste que eu espero não acontecer mais. É horrível você ver o fogo chegando perto, destruindo tudo aquilo que você plantou, que estava bonito. Isso mexe com a cabeça. Por uns três meses depois disso eu dormia e acordava vendo o fogo na minha frente. Eu acordava assustada, tinha uns pesadelos feios com fogo”.
Momentos de terror vividos por moradores da APA Baía Negra durante incêndios
Após os incêndios, as 38 famílias da APA Baía Negra buscaram formas de recomeçar e impedir que o fogo voltasse a destruir a unidade de conservação que chamam de lar. Nos anos conseguintes, focos de incêndios foram prontamente combatidos pelas brigadas da APA antes mesmo de se alastrarem.
Resiliência e vontade de recomeçar são fundamentais após tragédias como as vivenciadas no Pantanal. É assim que dona Zilda encara a missão de restaurar o lugar onde vive.
“Se eu cheguei aqui em um lugar, eu quero melhorar, quero plantar como já plantei. Nós temos que cuidar senão o nosso futuro vai ficar complicado. Eu quero que os meus filhos possam aproveitar o que eu tenho hoje em dia, essa maravilha que é o Pantanal”.
Após o plantio das mudas, moradores e moradoras da região e técnicos do projeto devem seguir monitorando o desenvolvimento das plantas. Seu Galdino, esposo de Zilda e pai de Naiara, é um dos responsáveis pelo acompanhamento. Ele e outros moradores da APA foram treinados para fazer uso do aplicativo de celular Sapelli para registrar a evolução das mudas plantadas na área de restauração.
A restauração ambiental é atividade que exige mobilização coletiva e mudança duradoura. No processo, são envolvidos moradores (as), pesquisadores (as), extrativistas, agricultores (as) e até visitantes. Para Zilda, o exercício de restaurar o Pantanal traz benefícios para o local, mas vai além.
“Se eu planto aqui não vai servir só para mim, vai servir também para quem está em Campo Grande, em São Paulo, em outros lugares. Eu não entendia isso, mas por causa da Amazônia eu percebi que o que foi destruído lá, afeta nós aqui. Nós temos que cuidar da nossa natureza e ensinar os jovens também, que nem os meus que já sabem cuidar. Senão tudo isso vai acabar”
De mãe para filha, são transmitidas formas respeitosas de lidar com a natureza. E é assim que o cuidado com o meio que as cercam cresce como uma muda que é depositada no solo. A possibilidade de renovação que surge ao se restaurar é reforçada por Naiara enquanto ela reflete sobre futuro e esperança.
“Com os frutos nativos daqui, as mulheres da cozinha vão conseguir produzir doce, rapadura, suco. Tem algumas plantas que servem de ceva para o peixe, vai ajudar os pescadores. E para mim a restauração é importante para pensarmos em um futuro melhor. Plantar agora ajuda a restaurar para as outras pessoas, futuramente. O que a gente planta hoje, vai ser muito útil para alguém no futuro”.
A beleza da Área de Proteção Ambiental Baía Negra, no Pantanal