Com uma produção de 120 milhões de toneladas, o Brasil passou a representar mais de 50% das exportações mundiais de soja, com destaque para a região centro-oeste do país.
A melhoria da logística proporcionada por um projeto “greenfield”, que conecta Sinop/MT a Miritituba/PA, com 933 km de extensão, coloca a Ferrogrão no centro da agenda nacional de infraestrutura.
Apesar disso, é difícil imaginar que qualquer recurso privado ou institucional de longo prazo, interno ou externo, seria investido neste projeto desconsiderando riscos ambientais, sociais e de governança (ASG). Principalmente, no caso desta ferrovia, que corre paralela a uma rodovia (BR-163), marcada por conflitos pela apropriação de recursos naturais, em meio a territórios indígenas e unidades de conservação sob pressão de intrusões e atividades ilegais.
Essa percepção do alto risco ASG da Ferrogrão, confirmada por um “road show” recentemente promovido pelo Programa de Parcerias de Investimentos, levou o governo a colocar à disposição dos empreendedores, R$ 2 bilhões de recursos públicos, provenientes da renovação da concessão de outras ferrovias, para mitigar tais riscos. Isso antes mesmo da finalização do estudo de impacto ambiental.
Mas haveria outro caminho para endereçar tais riscos?
Segundo a Price Waterhouse & Coopers, até 2025, 60% dos fundos mútuos de ativos europeus estarão alinhados a princípios ASG. Quatro são os processos por trás desse crescimento: a mudança de uma postura voluntária para um arcabouço regulatório, como, no caso brasileiro, da política de responsabilidade social e ambiental do sistema financeiro; casos práticos que desmistificaram a tese de que, para ser sustentável, investidores devem sacrificar seus retornos; o crescimento expressivo de uma nova mentalidade de investidores, particularmente institucionais, que demandam impactos ASG positivos, ao lado do retorno financeiro; e o aumento da consciência pública dos impactos sobre as mudanças climáticas e a sustentabilidade, que levaram essa questão ao topo da agenda global.
Segundo o estudo de viabilidade, a demanda para o carregamento de grãos pela ferrovia deve atingir, em 2030, um volume de 19,2 milhões de toneladas, alcançando 47,4 milhões 10 anos depois. Neste momento, a produção de soja do Mato Grosso atingiria 55 milhões – um acréscimo de 60% em relação aos 35 milhões de toneladas da última safra.
Tal feito se dá pela assumpção de um extraordinário crescimento da produtividade da soja, dos atuais 3,6 para 5,6 toneladas por hectare. Todavia, caso se adotasse a taxa observada nos últimos 20 anos – da ordem de 20% – haveria a necessidade de um acréscimo da área cultivada de 3 milhões de hectares.
A implantação deste projeto é capaz de reduzir os custos logísticos em 1/3. Como parte deste ganho deve se traduzir em preços mais atrativos para os produtores rurais, os incentivos econômicos para a expansão da área cultivada serão ainda maiores, com o risco de que tal expansão se dê pela conversão de pastos em culturas anuais, empurrando mais boi para dentro da Amazônia.
Nesse aspecto, os riscos socioambientais do projeto não foram adequadamente incorporados nos estudos de viabilidade econômica, o que não significa dizer que, quando incorporados, possam levá-lo à um cenário de inviabilidade econômico-financeira. Ao contrário, os indicadores econômico-financeiros do projeto são suficientemente robustos para iniciativas, tanto de prevenção de um avanço desordenado da fronteira agrícola, como do desenvolvimento ASG na sua área de influência. E isso pode ser articulado, com os R$ 2 bilhões disponíveis, em um processo de qualificação da Ferrogrão como um investimento de impacto regional, social, econômico, ambiental e de governança.
Nessa trilha, é viável se pensar em uma redução de 1% no custo médio ponderado de capital do projeto através da captação de green bonds. Se esse “ganho verde” fosse repassado a iniciativas ASG, seu valor presente seria de R$ 1,1 bilhões. Na busca de sustentabilidade do investimento, do local ao global, o primeiro passo em relação aos riscos e oportunidades ASG do projeto deveria ser a construção de uma governança participativa com os grupos de interesse regional – começando por uma consulta livre, prévia e informada às comunidades tradicionais, que atenda aos protocolos por elas desenvolvidos.
Dado que forças e interesses vão impulsionar a Ferrogrão – em síntese, seu DNA e a agenda do setor ferroviário – chegou a hora de começar a escrever uma nova estória no desenvolvimento da infraestrutura do país na Amazônia.
Nelson Siffert Filho, é Doutor em Economia pela USP, foi economista do BNDES de 1985 a 2020
Pedro Bara Neto, é Mestre em Ciências da Engenharia pela Universidade de Stanford e especialista em infraestrutura e energia na Amazônia.