Via GT Infra
Um grupo de mais de 30 organizações da sociedade civil e de pesquisas enviou uma notificação extrajudicial a instituições financeiras para alertar sobre os riscos — e os prejuízos ambientais — associados ao projeto da ferrovia EF-170, conhecida como Ferrogrão. Considerado uma obra de infraestrutura prioritária pelo governo federal, o projeto prevê a construção de uma linha férrea com 933 km de extensão que cortará uma área sensível da Amazônia brasileira, cruzando unidades de conservação próximas a terras indígenas.
De acordo com a notificação enviada aos bancos, a obra tem potencial para estimular conflitos por terras e provocar o desmatamento de uma área de floresta do tamanho da cidade de São Paulo. Estudos citados no documento mostram que o projeto não considera cenários alternativos, que os custos de implantação foram subestimados — e que o retorno financeiro do projeto deve ficar muito aquém do projetado.
O texto é uma iniciativa do GT Infraestrutura, grupo que reúne mais de 40 organizações socioambientais, pesquisadores e cientistas atuantes em todo o país, que tem como objetivo contribuir para a democratização e a efetividade de Políticas Públicas de Energia e Infraestrutura, na Amazônia e no Brasil.
Para o secretário executivo da rede, Sérgio Guimarães, os riscos do projeto da ferrovia devem ser analisados cuidadosamente diante da legislação brasileira e de normas internacionais, antes da tomada de qualquer decisão de eventual financiamento. “Além de ameaçar a floresta, populações tradicionais e compromissos de mitigação da crise climática, o projeto apresenta deficiências em análises de viabilidade econômica, que fragilizam a proposta da ferrovia e significam riscos econômicos e de reputação para instituições financeiras potencialmente interessadas em investir no empreendimento”, afirma.
Falhas e impactos do projeto Ferrogrão – A Carta enviada a instituições financeiras destaca 9 falhas do projeto que indicam fragilidades da proposta da Ferrogrão e que precisam ser avaliadas por potenciais investidores.
A ferrovia:
1. Ignora critérios internacionais de sustentabilidade;
2. Subestima o desmatamento de mais de 2 mil km² de floresta;
3. Estimula a grilagem de terras e conflitos fundiários;
4. Aumenta pressão para diminuir unidades de conservação;
5. Viola direitos de povos indígenas;
6. Contraria os compromissos de zero desmatamento assumidos pelas empresas agropecuárias ;
7. Tem custos de construção subestimados e retorno aquém do projetado;
8. Faz avaliação falha da concorrência;
9. Não avalia as rotas alternativas.
São pontos que, segundo os autores, devem ser avaliados por instituições interessadas em investir no projeto, sob o risco de se tornarem “solidariamente responsáveis por danos socioambientais que vierem a ocorrer”. Há riscos de ordem legal, ambiental e financeira. “O projeto da ferrovia subestima ou ignora os impactos ambientais da obra sobre unidades de conservação e terras indígenas; subestima riscos jurídicos e desconsidera a presença de concorrentes. Em conjunto, tais falhas ameaçam sua viabilidade econômica, e tornam o projeto, caso seja implementado, uma obra prejudicial para a Amazônia e seus habitantes e também para a infraestrutura do Brasil”, diz o documento.
Recorrendo a estudos e análises independentes, a notificação afirma que o projeto da Ferrogrão falha ao não avaliar o alcance dos prejuízos socioambientais associados à construção e operação da ferrovia.
Projetada para facilitar o transporte da soja produzida no estado do Mato Grosso e destinada à exportação, a ferrovia pretende ligar a cidade de Sinop (MT) aos terminais portuários de Miritituba, na cidade de Itaituba, no Pará.
O desenho proposto acompanha o traçado da já existente BR-163. Recém pavimentada, a rodovia cruza parte do Parque Nacional do Jamanxim — hoje, a quinta unidade de conservação (UC) mais desmatada do Brasil — e corre próxima a 16 terras indígenas, que estarão na zona de influência da ferrovia, caso a obra saia do papel.
Análises realizadas por pesquisadores do Climate Policy Initiative (CPI) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), citadas na Carta, mostraram que a construção da Ferrogrão poderia contribuir diretamente para o desmatamento de mais de 2 mil km² de floresta nativa, área superior à da cidade de São Paulo. Ao baratear os custos do transporte de grãos, afirmam os estudos, a operação da ferrovia vai estimular o avanço da fronteira agrícola sobre uma região da Amazônia onde os mecanismos de fiscalização ambiental são frágeis e onde faltam “instrumentos adequados de governança”.
Tamanho potencial de desmatamento é reflexo, ainda, de uma espécie de efeito dominó resultante da associação entre a ferrovia e outras obras de infraestrutura presentes ou planejadas para a região. “Apesar das exigências da Resolução 01/86 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), o EIA não considerou os impactos cumulativos e sinérgicos da Ferrogrão com outros grandes empreendimentos”, afirma a notificação.
Violações aos direitos de povos indígenas – A Carta lembra, ainda, que a proposta de ferrovia é, hoje, objeto de disputa jurídica. Desde outubro de 2020, o projeto é alvo de uma Representação do Ministério Público Federal (MPF) e de associações indígenas ao Tribunal de Contas da União (TCU). O Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) da Ferrogrão aponta que o traçado da ferrovia deverá correr próximo a 16 terras indígenas. Essas populações, no entanto, não foram consultadas a respeito da obra durante a fase de planejamento do empreendimento.
A não realização da Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI) viola convenções internacionais de que o Brasil é signatário, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração Americana sobre os Direitos Indígenas. De acordo com essas normas, povos indígenas e populações tradicionais têm direito ser consultados a respeito de decisões legislativas ou administrativas que afetem seus territórios e seu modo de vida.
Custos de implantação foram subdimensionados – Por fim, a Carta aponta que, de acordo com análises independentes, os custos de implantação da ferrovia, orçados em R$8,42 bilhões, foram subdimensionados. Caso seja construída, a Ferrogrão cruzará uma área de difícil acesso da floresta amazônica. Projetos de ferrovias semelhantes, construídas em terrenos sem infraestrutura prévia, costumam prever custos de implantação muito superiores. De acordo com análise do economista Cláudio Frischtak, citada na Carta, num cenário realista, tais custos girariam em torno de R$28,98 bilhões.
O documento ainda destaca a relação entre a Ferrogrão e eventuais concorrentes. Ainda segundo os estudos de Frischtak, o Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) falha ao não explicar por que as rotas alternativas — já existentes ou planejadas — não inviabilizam a nova ferrovia. Situação curiosa, diz ele, é da BR-163. Desde que a rodovia foi pavimentada, caíram em 26% os custos de transportar grãos por ela. A BR-163 deve ser concedida à iniciativa privada. Se novas melhorias forem implementadas, diz Frischtak, a queda nos custos de transporte pelo modal rodoviário deve fazer despencar a Taxa Interna de Retorno (TIR) prevista para a Ferrogrão. Hoje, calcula-se que ela será de 11,04%. Frischtak pondera que, segundo análise mais realista, a TIR deve ficar entre 1,69% e 3,13%.
Sobre a Ferrogrão – A proposta da Ferrovia EF-170, conhecida como Ferrogrão, foi concebida com o objetivo de reduzir os custos de transporte da soja produzida no estado de Mato Grosso e destinada à exportação. Orçado em R$ 21,5 bilhões, e com custos de implantação estimados em R$ 8,42 bilhões, o projeto prevê uma rota de escoamento que cruza 933 km de Floresta Amazônica, ligando áreas produtoras do centro-oeste brasileiro ao complexo de terminais de transbordo fluvial de Miritituba, na cidade de Itaituba, às margens do rio Tapajós, no estado do Pará. A partir dali, a carga seguiria até um porto marítimo por meio de barcaças.
A Ferrogrão foi inserida no portfólio da Empresa de Planejamento e Logística (EPL) a pedido do consórcio Pirara, formado pela Estação da Luz Participações (EDLP) e por cinco tradings da soja. Hoje, ela consta entre as obras previstas pelo Plano Nacional de Logística 2035 (PNL), que aponta as prioridades de longo prazo para o setor.
Apesar da urgência dada pelo governo, os autores da Carta Alerta destacam que existe um descolamento entre o projeto e a realidade da Amazônia: “[o projeto] não considerou as necessidades de desenvolvimento sustentável e de integração territorial do país nos médio e longo prazos”, escrevem. Portanto, reforçam, é fundamental que todos os riscos sejam analisados cuidadosamente por potenciais financiadores, antes da tomada de qualquer decisão. Ao mesmo tempo, se colocam disponíveis para interagir.
Assinam a Carta:
GT Infraestrutura
Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais – FBOMS
Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental – FMCJS
Observatório do Clima
Movimento Tapajós Vivo – MTV
Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB
Sociedade para Pesquisa e Proteção do Meio Ambiente – SAPOPEMA
Grupo de Trabalho Amazônico – Rede GTA
Rede Pantanal
350.org
Conectas
Associação Alternativa Terrazul
Greenpeace
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Projeto Saúde e Alegria – PSA
International Rivers – IR
Fundação Vitória Amazônica – FVA
Instituto Socioambiental – ISA
ECOA – Ecologia e Ação
Núcleo de Estudos Amazônicos da Universidade de Brasília – NEAz UnB
Instituto de Energia e Meio Ambiente – IEMA
Operação Amazônia Nativa – OPAN
Conservation Strategy Fund – CSF
Centro de Inteligência Urbana de Porto Alegre – CIUPOA
ARAYARA.ORG
Instituto Internacional de Educação do Brasil – IIEB
Instituto de Pesquisas Ecológicas – IPE
Instituto Centro de Vida – ICV
Comissão Pastoral da Terra – CPT
Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia – IDESAM
Instituto 5 Elementos
Instituto Sociedade, População e Natureza – ISPN
Instituto Climainfo
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC
Asociación Interamericana para la Defensa del Ambiente – AIDA
Bank Information Center – BIC
Federação do povos indígenas do Estado do Pará – FEPIPA
Latinoamérica Sustentable – LAS