Texto originalmente publicado em: 13/11/06
As usinas hidrelétricas do rio Madeira, promessa de campanha do presidente Lula, podem causar problemas ambientais no Brasil e na Bolívia, onde começa a se intensificar a reação contra o projeto.
A conclusão é de uma série de relatórios encomendados pelo Ministério Público de Rondônia, que pediu a especialistas uma avaliação do estudo de impacto ambiental (EIA) apresentado pelos construtores.
De acordo com os pareceres, obtidos pela Folha, o estudo original precisa ser aprofundado, pois não deixa claro se as usinas de Santo Antônio e Jirau -um projeto de R$ 20 bilhões- conseguirão driblar problemas como perda de florestas, escassez de peixes e colapso de ecossistemas.
“O EIA diz que não ia ter nenhum impacto para a Bolívia, mas deve ter vários”, disse à Folha o biólogo Philip Fearnside, do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), autor de um dos pareceres entregues aos promotores. O Madeira é o principal rio do país vizinho. “Um argumento usado em favor das usinas é que a área inundada será pequena em relação à capacidade instalada [6.500 MW], mas esse benefício está sendo exagerado.”
Fearnside e outros autores afirmam que o modelo usado para prever o padrão de deposição de sedimentos no rio é rudimentar e as áreas alagadas podem acabar sendo maiores. “Haverá impacto na Bolívia porque o ciclo anual de enchente e vazante desce à altitude de 85 metros na junção entre os rios Abunã e Madeira [na fronteira], mas com o lago o nível da água ficará sempre em 90 metros.” Segundo ele, uma grande área de vegetação de igapós, que na natureza fica alagada só sazonalmente, acabaria submersa para sempre e morreria.
Outro consultor, Ronaldo Barthem, do Museu Paraense Emílio Goeldi, afirma que o ciclo de reprodução de peixes importantes para a pesca local pode ser afetado pelas turbinas das usinas. “A pressão da água nesses compartimentos é exagerada e pode ser um fator multiplicador da taxa de mortalidade de ovos e alevinos dos peixes migradores”, escreve.
Para José Galizia Tundisi, especialista em recursos hídricos, o EIA precisa ser melhorado, “até para não comprometer o futuro funcionamento da usina”. Em parecer, diz que questões sobre fluxo de sedimentos no rio e transporte de madeira em corredeiras estão pendentes. “Não sou contra o empreendimento. Sou a favor de análise mais aprofundada.”
O Ministério Público de Rondônia está tentando impedir audiências públicas nas quais o Ibama está apresentando o projeto à população local, que considera precipitadas. O Ibama conseguiu, na semana passada, derrubar liminares que suspendiam quatro delas.
Além da fronteira
O projeto brasileiro gerou uma série de críticas na Bolívia e tem ganhado destaque na imprensa local, que pede uma posição do governo Evo Morales.
No início do mês passado, autoridades locais, ambientalistas e sindicalistas se reuniram na cidade de Riberalta, a 80 km da fronteira com o Brasil. O encontro produziu um duro documento contra a construção das represas, assinado por lideranças locais e por ONGs como a Fobomade (Fórum Boliviano de Meio Ambiente e Desenvolvimento), que tem forte influência no governo.
O texto afirma que, se construídas, as represas terão um profundo impacto na Bolívia, como o represamento de rios menores, e diz que o Brasil vem tratando do assunto unilateralmente. Em editorial há duas semanas, o jornal “La Razón” diz que o Brasil vem “ignorando normas para o uso de águas que são de curso internacional”.
Anteontem, o ministro boliviano da Água, Abel Mamani, disse à Folha que ainda não tem posição fechada sobre o tema, mas se pronunciará nos próximos dias. “Ainda estamos considerando todos os informes que nos estão chegando.”
A principal medida da Bolívia sobre o assunto até agora é um decreto assinado por Eduardo Rodríguez, antecessor de Morales. Ele estabelece que o Estado boliviano não cederá licença ou concessão na bacia do rio Madeira enquanto não houver um estudo oficial sobre os recursos hídricos.
Outro lado
O estudo de impacto ambiental do projeto das usinas no rio Madeira já foi recebido e considerado válido pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), mas isso não significa que a obra tenha sido aprovada pelo órgão federal.
Autoridades do governo ainda não receberam os estudos encomendados pelo Ministério Público de Rondônia, mas afirmam que os questionamentos levantados estão sendo avaliados.
“Essas são perguntas a que responderemos ao final do processo”, disse à Folha Luiz Felipe Kunz Júnior, diretor de licenciamento ambiental do Ibama. “Toda ação do Ibama é baseada no parecer da sua equipe técnica, que ainda não foi dado.” Segundo Kunz, um eventual pedido de revisão do estudo de impacto ambiental elaborado pelas empresas Furnas e Odebrecht, autoras do projeto, não é impossível, mas só se saberá isso em janeiro.
“É evidente que ninguém vai autorizar uma hidrelétrica que tenha, comprovadamente, impactos em outro país sem que haja antes um acordo internacional”, diz. “Mas não existe ainda um posicionamento nem uma certeza sobre se haverá ou não impactos na Bolívia. Isso até agora não está demonstrado cabalmente.”
Entrevistado pela Folha anteontem, Kunz ainda não tinha recebido cópias dos estudos encomendados pelo Ministério Público de Rondônia, mas minimizou a importância dos trabalhos. “O estudo [encomendado a pedido] do Ministério Público não é um documento oficial do processo.”
Segundo o diretor do Ibama, o órgão ainda vai analisar os papéis. “Mas não tenho como antever nem sequer se a nossa equipe técnica vai considerar esses estudos como documentos de complementação.”
Sob crítica do Ministério Público de Rondônia, Kunz nega que o Ibama esteja querendo trabalhar de maneira fechada para pressionar uma decisão em favor das usinas. “As conclusões a que nós podemos chegar são várias”, diz. “Podemos chegar à conclusão de que uma usina é viável e a outra precisa de complementação, por exemplo, ou podemos chegar à conclusão de que nenhuma das duas precisa de complementação.”
(Foto de capa de Wilson Dias via International Rivers)