- Lei que protegia o rio Cuiabá de barragens foi declarada inconstitucional pelo STF
- Mais de 80% da população que vive na bacia do rio Cuiabá depende das águas desse rio que abastece o Pantanal
- As barragens alteram a dinâmica das águas e isso, além de gerar impactos ambientais, afeta a economia local
- Estudo feito pela Agência Nacional das Águas coloca o rio Cuiabá como zona vermelha, ou seja, local onde não se deve construir hidrelétricas
Daniela Maimoni de Figueiredo, MidiaJur
Está em pauta um projeto para a construção de seis hidrelétricas ao longo de 190 Km do rio Cuiabá, após a foz do rio Manso, entre Nobres e Rosário Oeste, até próximo da área urbana de Cuiabá-Várzea Grande. Esse projeto está há cerca de dois anos suspenso por decisão judicial e foi objeto de uma lei aprovada por deputados na Assembleia Legislativa de Mato Grosso, de autoria do deputado Wilson Santos, que proibiu a instalação de hidrelétricas na bacia do rio Cuiabá.
No dia 08 de maio deste ano, o STF julgou essa lei como inconstitucional, por oito votos à dois. Não é sem razão que as hidrelétricas vêm causando tanta polêmica e indignação de lideranças políticas e comunitárias, pescadores, pesquisadores, ambientalistas e comunidade em geral. Este breve artigo explica as principais razões para que estas hidrelétricas não sejam construídas, com base no conhecimento gerado por pesquisadores e nos saberes da população que vive ao longo do rio Cuiabá.
Leia também: Pantanal – STF invalida lei que protege rio Cuiabá
Na bacia do rio Cuiabá vive quase 1/3 da população do Estado, a maior parte na área metropolitana da capital. Mais de 80%, cerca de 750.000 pessoas, depende das águas do rio Cuiabá como fonte de abastecimento público e milhares de famílias dependem da pesca para sobrevivência e base alimentar. O Cuiabá é um dos mais importantes rios formadores do Pantanal, juntamente com o Paraguai, São Lourenço, Vermelho, Jauru, Cabaçal, Sepotuba, Itiquira, Taquari, entre outros. Esses rios formam uma grande bacia, denominada Região Hidrográfica do Paraguai (RH Paraguai), localizada entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Na época de chuva, entre os meses de dezembro e abril, ocorre o aumento do volume de água dos rios da RH Paraguai, chamado de pulso de inundação, fundamental para a existência do Pantanal. Nessa época do ano, os peixes de piracema, que são justamente os que possuem maior valor comercial (pintado, cachara, dourado, pacú, piraputanga, etc.), percorrem até 400 quilômetros rio acima, para as partes mais altas da bacia, e descem o rio desovando. Os ovos e larvas dos peixes são transportados pela corrente do rio até as baías no Pantanal, como Chacororé e Sinhá Mariana em Barão de Melgaço, que se conectam com o rio Cuiabá, onde irão crescer e se alimentar protegidos de predadores.
Leia também: Professor alerta que represas devem secar o Pantanal em MT
Essas baías laterais ao rio, que são verdadeiros berçários, dependem do pulso de inundação para se conectar com o rio na época de chuva, por onde recebem água, nutrientes, sedimentos e os alevinos dos peixes. Essa conexão somada às condições da qualidade da água e à hidrografia favorável às rotas migratórias dos peixes explica, em grande parte, porque o rio Cuiabá detém quase 50% de todo o estoque pesqueiro da RH Paraguai, e demonstra sua importância como conector entre as partes altas da bacia e o Pantanal, em particular com as baías laterais.
A importância dos peixes, da pesca e do pulso de inundação para a socioeconomia e a proteção ambiental do Pantanal, inclusive para o rio Cuiabá, motivou a realização de um amplo estudo na RH Paraguai. O objetivo principal foi analisar os impactos socioambientais causados em conjunto pelas 50 hidrelétricas em operação e estimar, por meio de modelos baseados em conhecimento, os impactos que serão causados com a construção de mais 133 hidrelétricas, inclusive as seis PCHs no rio Cuiabá. O estudo foi desenvolvido entre 2016 e 2020, por 83 pesquisadores de universidades e instituições de pesquisa de várias partes do Brasil, principalmente de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, e faz parte do Plano de Recursos Hídricos da RH Paraguai.
Conforme os pesquisadores, a piscosidade do rio Cuiabá confere uma importância econômica à pesca, sendo uma das principais fontes de renda e alimento de milhares de famílias e de empresas de turismo, incluindo restaurantes, pousadas e pesqueiros. Estima-se que cerca de 1.300 tablados de pesca estão localizados ao longo de 670 Km do rio Cuiabá. Portanto, além da importância ecológica para o Pantanal, principalmente para os peixes migradores, os recursos pesqueiros são fundamentais nos três tipos de pesca que ocorrem na bacia, conforme identificado no estudo: 1- Pesca Profissional Artesanal, realizada por comunidades ribeirinhas e colônias de pescadores; 2- Pesca Turística, que envolve toda a cadeia do turismo; e 3- Pesca Difusa, que são atividades de pesca dos habitantes locais exercidas para a subsistência e/ou para lazer.
Leia também: Mudanças climáticas e barragens nos rios – dobradinha pode ser fatal para os peixes do Pantanal
A pesquisa demonstrou que a Pesca Profissional Artesanal, desenvolvida diretamente por mais de 30 mil pessoas, gera cerca de 70 milhões de reais por ano (em 2017), boa parte pelas colônias de Santo Antônio do Leverger, Poconé e Várzea Grande, sem contar as atividades paralelas, como barqueiro e isqueiro (coleta e venda de iscas). Sobre a Pesca Turística na RH Paraguai, que ocorre na parte baixa do rio Cuiabá (Santo Antônio do Leverger, Barão de Melgaço e Poconé), estimou-se um faturamento em torno de 120 milhões de reais, que recebe mais de 223 mil turistas/ano, envolvendo uma grande cadeia de serviços e empregos no setor. Na Pesca Difusa, quase 58% da população pesca frequentemente e tem o rio como uma fonte adicional de alimento, como local de lazer e parte da sua cultura, em especial o rio Cuiabá.
Leia também: Remoção de barragens permitiu retorno de salmões e recuperação de ecossistemas nos Estados Unidos
Os estudos identificaram que o rio Cuiabá perderá 85% da sua conexão com o Pantanal e afluentes e sofrerá alteração no pulso de inundação. As barragens previstas causarão uma fragmentação do rio e serão uma barreira para a migração dos peixes de piracema. Além disso, a retenção de água nos seis reservatórios hidrelétricos poderá reduzir a conexão do rio com as baías de Chacororé e Sinhá Mariana e a quantidade de nutrientes na água, ou seja, o rio ficará mais pobre e terá menos alimento disponível aos peixes. Será praticamente o colapso da pesca na bacia do rio Cuiabá! Lembrando que já há consenso entre toda a comunidade científica de que as escadas de peixe não funcionam e causam impacto adicional sobre a população de peixes! Não há alternativa tecnológica para solucionar essa questão, exceto buscar outras fontes de energia renovável, que não cause impactos tão profundos e irreversíveis em um rio tão importante.
As pesquisas científicas confirmam o que todo ribeirinho, que convive diariamente com o rio, já sabe: que a construção de barragens causará enorme impacto negativo nos estoques pesqueiros e no funcionamento ecológico do rio Cuiabá e do Pantanal, pois conhece o ritmo das águas e dos peixes.
Dentre as conclusões da pesquisa, que foi contratada pela Agência Nacional de Águas (ANA) e coordenada pela Fundação Elizeu Alves, ligada à Embrapa Pantanal (Corumbá-MS), o rio Cuiabá foi classificado como zona vermelha, ou seja, local onde não se deve construir hidrelétricas. Isso não significa que hidrelétricas não podem mais ser construídas, pois vários trechos de rios da bacia do Cuiabá e de outras bacias da RH Paraguai foram classificados como zonas verdes, com baixo impacto social, ambiental e econômico. Existem muitos exemplos de hidrelétricas de baixo impacto em rios de Mato Grosso.
Vale destacar ainda que o referido estudo, por compor um capítulo do Plano de Recursos Hídricos da RH Paraguai, é um instrumento legal de planejamento de uso da água, estabelecido pela Política Nacional de Recursos Hídricos, conhecida como Lei das Águas (Lei Federal nº 9.433/1997), e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Isso significa que a construção das hidrelétricas violaria esse Plano e, por conseguinte, a Lei das Águas.
Uma outra questão relevante sobre é quanto aos usos múltiplos da água, também garantido pela Lei das Águas. No rio Cuiabá existem vários tipos de uso da água, como abastecimento público nas cidades localizadas em suas margens (Rosário Oeste, Acurizal, Cuiabá, Várzea Grande, Santo Antônio do Leverger e Barão de Melgaço), para banho e lazer (praias), pesca (como já citado acima), navegação e turismo, além de ser fonte de água para tanques de piscicultura, irrigação de pequenas plantações e hortaliças, criação animal (principalmente na pecuária) e para várias indústrias. Caso as hidrelétricas sejam construídas, quase todos esses usos estariam comprometidos e o rio seria destinado praticamente para fins de geração de energia.
Isso não é nenhum alarmismo ou adivinhação, tendo em vista que já temos um exemplo emblemático de como a construção de seis hidrelétricas captura o rio para benefício e lucro de poucos: o caso do rio Jauru, também tributário do Pantanal. O comprometimento dos usos múltiplos em detrimento da geração de energia seria mais grave na época da estiagem, quando os conflitos de uso da água afloram. Isso pode se agravar mais ainda, pois há estudos estimando que eventos extremos de seca serão cada vez mais comuns na nossa região, devido às mudanças climáticas.
Leia também: Quem sofre com os danos no rio Jauru?
Ignorar todas as questões expostas acima, dando preferência a apenas um uso da água, é tanto um negacionismo científico como uma desconsideração com toda a sociedade. Sabemos de inúmeros exemplos de empreendimentos hidrelétricos que não compensam e nem indenizam devidamente os prejuízos socioambientais causados e adotam o falso discurso de que o empreendimento traria “desenvolvimento” (que na verdade é para poucos) e geração de emprego (que na verdade só ocorre durante as obras). Não precisamos esperar a tragédia acontecer! Vamos nos posicionar e nos mobilizar contra este descalabro, contra o sequestro do rio Cuiabá por uma empresa privada, para gerar uma quantidade insignificante de energia frente aos imensos impactos negativos que as barragens irão causar na vida de milhares de pessoas e sobre o Pantanal. Temos o dever, como cidadãos e, no meu caso, como pesquisadora, que estuda há quase 30 anos a bacia do rio Cuiabá e os impactos de hidrelétricas em vários rios, de ser contra este projeto absurdo, que fere direitos básicos dos cidadãos e coloca em risco a segurança hídrica e alimentar de milhares de mato-grossenses.