O Programa “Valorização de Plantas Alimentícias do Cerrado e do Pantanal”, mais conhecido como “Sabores do Cerrado e Pantanal”, foi concebido em 2006, sob a coordenação de Geraldo Alves Damasceno Junior (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Ministério da Educação.
Desde sua concepção, o programa foi acolhido pela Ecoa e pelo CEPPEC (Centro de Pesquisa, Produção e Capacitação do Cerrado), localizado no Assentamento Andalúcia (Nioaque, Mato Grosso do Sul), bem como pelo Laboratório de Botânica (Campus de Corumbá), pelo Laboratório Interdisciplinar de Prática de Ensino, pelo DTA (Departamento de Tecnologia de Alimentos) e pelo FACFAN (Faculdade de Ciências Farmacêuticas, Alimentos e Nutrição). Atualmente também integram o programa acadêmicos da Escola de Administração e Negócios (ESAN) e da Faculdade de Engenharias, Arquitetura e Urbanismo e Geografia (FAENG), dos campus de Campo Grande, Aquidauana e Pantanal.
Segundo o boletim publicado pelo Programa, que pode ser baixado aqui: “O apoio e incentivo às comunidades para aproveitarem os frutos do mato surgiram como alternativas para ampliar a oferta de alimentos e melhorar a qualidade de vida dos moradores, buscando ao mesmo tempo a conservação da biodiversidade e a valorização das comunidades e da cultura.”
Os benefícios ambientais do programa vêm do manejo sustentável do cumbaru ou baru (Dipteryx alata), no assentamento Andalucia, desde o início da década de 2000, através do extrativismo sustentável e geração de renda para a comunidade pelo beneficiamento e comercialização das sementes ao natural, torradas ou sob a forma de farinha. Os benefícios sociais e culturais são a geração de renda, em especial para as mulheres; difusão de novos produtos disponíveis para a sociedade e incentivo no desenvolvimento de projetos por outras instituições; manutenção da cultura associada às espécies que fazem parte da cultura local.
Leia entrevista realizada com Ieda Maria Bortolotto, que coordenou o Programa Sabores do Cerrado e do Pantanal de 2009 a 2019 e hoje é colaboradora. Ieda é doutora em Biologia Vegetal e professora aposentada da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Poderia me dizer sobre o contexto de concepção do programa “Valorização de Plantas Alimentícias do Cerrado e do Pantanal”?
O programa é uma ação de extensão, com atividades transdisciplinares (envolve a Universidade em conjunto com outras instituições governamentais e não-governamentais e a sociedade (especialmente escolas e comunidades rurais). Ele surgiu há 15 anos, com objetivos relacionados à valorização de plantas alimentícias do Pantanal e Cerrado.
Em 2005, foi laçado um edital do CNPq que financiava projetos de extensão e a Ecoa procurou a UFMS para desenvolver um projeto. Na época, tínhamos resultados de pesquisas na Universidade, tanto na área de Botânica, quanto na de Tecnologia de alimentos e na de Prática de Ensino de Ciências que permitiram a construção de uma proposta que foi aprovada e teve início em 2006.
Tínhamos informações sobre a identificação botânica das espécies alimentícias da flora nativa, dados sobre quais delas eram usadas e quais estavam sendo pouco aproveitadas ou sobre os usos estavam sendo abandonados. Além disso, havia resultados de pesquisas pioneiras sobre o valor nutricional de frutos nativos, como a bocaiuva (Acrocomia spp.), por exemplo, que davam suporte às ações previstas. No contexto das comunidades, havia diversas pequenas comunidades tradicionais e mesmo assentamentos rurais (pequenos agricultores) que viviam em áreas com rica diversidade de plantas e que poderiam ser beneficiados com projetos que apoiassem o uso e a conservação de plantas alimentícias nativas e melhoria da sua qualidade de vida.
O que a senhora já descobriu nesses 15 anos de programa que a senhora ainda não conhecia em relação à produção da sociobiodiversidade do Pantanal e Cerrado?
À medida que fomos desenvolvendo as ações de extensão, percebemos que muitos conhecimentos que estavam adormecidos nas comunidades foram despertados. Em diversas situações, foi possível notar que após algum tempo (às vezes contados em anos), emergiram modos de usos e preparos de alimentos que faziam parte da cultura local no passado e que não apareceram nas primeiras pesquisas em Etnobotânica que fizemos. Isso mostra que quando há investimento e respeito aos saberes locais, eles emergem e são importantes nesse momento em que se busca garantir a segurança alimentar e nutricional e a soberania alimentar. Tenho percebido que a associação dos conhecimentos científicos aos tradicionais é essencial para que consigamos aumentar a oferta de alimentos a partir das plantas alimentícias nativas.
Quais as conquistas que a senhora poderia destacar?
No contexto sociocultural, vejo como conquistas associadas ao nosso programa, as iniciativas de diversas comunidades rurais em aproveitar planta alimentícias que eram negligenciadas, como é o caso do acuri (Attalea phalerata), da laranjinha-de-pacu (Pouteria glomerata), do arroz-do-pantanal e do jaracatiá, Jaracatia corumbensis) em Corumbá. São frutos colhidos, sementes e outras partes das plantas sem que seja necessário o uso de agrotóxicos ou de desmatamentos. Esse trabalho é muitas vezes desenvolvido por mulheres, que estão obtendo renda com o aproveitamento de recursos que estão próximos de suas casas e que resultam numa atividade prazerosa, rentável e que traz diversos benefícios para suas famílias.
O paradigma de que é necessário desmatar o Cerrado para que ele seja produtivo, aos poucos está mudando. Isso vale para o Pantanal também. Em função da importância dessas plantas, já se observam benefícios ambientais, como no caso específico do cumbaru (Dipteryx alata), cujas plântulas estão sendo protegidas em assentamentos rurais no Cerrado, oferecendo maiores chances de aumento populacional da espécie num futuro próximo. Mas há ainda outras inciativas importantes que considero conquistas para toda a sociedade, e que não resultam apenas do nosso Programa, mas de um conjunto de projetos que também envolvem plantas alimentícias nas últimas duas décadas, como a produção de mudas e as propostas de usos de espécies alimentícias nativas em projetos de restauração ecológica, por exemplo.
O envolvimentos de projetos e/ou instituições que se dedicaram a compartilhar seus conhecimentos, como é o caso do nosso Programa na Universidade, e a participação de organizações como a ECOA, que se dedicam também a apoiar a formação de associações, redes e a cooperação, têm sido importantes para que as comunidades possam se fortalecer. Por outro lado, tenho visto que as comunidades têm sido cada vez mais as protagonistas de seus projetos. Isso certamente se deve a um movimento desencadeado por elas, que buscam melhorar as suas condições de vida e sua organização. Também vejo que as mulheres, em geral, estão assumindo para si, muitos papeis de liderança nesse processo. Os tomadores de decisões devem ficar atentos para elaborarem políticas públicas que apoiem e respeitem esse processo.
Poderia me falar um pouco mais sobre a parceria entre o programa e a ONG Ecoa?
Além da participação da ECOA quando elaboramos o primeiro projeto para conseguir recursos financeiros em 2005, nós temos contado com o apoio da ECOA nas nossas atividades com comunidades que vivem ao longo do rio Paraguai, no Pantanal. Em diversas situações, fomos parceiros nos apoiando mutuamente para incentivar o aproveitamento de frutos nativos nas comunidades do Pantanal. A Universidade tem fornecido informações nutricionais sobre frutos e farinhas, por exemplo, que podem constar em rótulo de produtos nas comunidades apoiadas pela ECOA. Em outras situações, tivemos a colaboração da ECOA na logística, com o empréstimo do barco, na época que ainda não contávamos, na UFMS, com um meio de transporte para acessar as comunidades. Nós usamos por diversas vezes a base da ECOA na comunidade do Amolar (Corumbá), durante nossas atividades na região. Também estivemos juntos em eventos importantes, como em 2015, na UFMS, dando apoio, quando foi lançada a rede Cerrapan (Rede de mulheres do Cerrado e do Pantanal). Acredito que fazemos um trabalho complementar, onde buscamos apoio quando precisamos, ao mesmo tempo em que apoiamos naquilo que somos capazes.
Imagem de capa: Iasmim Amiden.