O que D. Neuza tem em comum com D. Edil, Daniel, Cleide e milhares de outras pessoas que vivem na região do Pantanal, no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, entrando pela Bolívia e Paraguai?
Todos eles compartilham a vida, os sonhos e os desafios num ecossistema de rara beleza e ao mesmo tempo de grande vulnerabilidade. Todos eles viveram uma vida relativamente tranquila, tirando seu sustento da natureza exuberante e generosa, até que as mudanças drásticas na forma de ocupação, a partir da segunda metade do século 20 e o começo do 21, começaram a afetar, em ritmo acelerado, esse equilíbrio.
As terras pantaneiras se valorizaram e provocaram a ganância dos fazendeiros. As empresas mineradoras se apossaram de grandes áreas, transformando verdes montes em montanhas de minério arrancadas e transportadas sobre vagões de trens ou barcaças pelos rios até os portos. O turismo também descobriu a região e muitas iniciativas se revelaram predatórias, extremamente prejudiciais à população local e ao ecossistema.
“Conheci o Pantanal como pesquisador. Até um certo momento, eu só enxergava os dados, os números das pesquisas, mas passei a ver as dinâmicas sociais e políticas desse ecossistema vulnerável. Conheci as pessoas invisíveis que ali viviam, sofrendo com todo tipo de pressão, vivendo na pobreza e falta de perspectiva. E percebi que são elas que cuidam dos recursos nas áreas prioritárias, são elas as responsáveis pelo patrimônio cultural, histórico e natural incalculável dessa região.”
André Siqueira, Diretor Presidente da ECOA – Ecologia e Ação, instituição parceira do Fundo CASA desde sua concepção, fala de seu envolvimento com a causa socioambiental e da importância da ECOA ter contribuído para viabilizar um fundo que apoiasse diretamente as populações locais — um instrumento fundamental no trabalho de proteção dessa grande região.
“A história de parceria entre o Fundo Socioambiental CASA e as associações representantes de comunidades tradicionais do Pantanal é real, concreta e inspiradora. As ações apoiadas pelo Fundo CASA no Pantanal têm mudado a realidade socioambiental e econômica destes grupos que estão entre os mais vulneráveis do país. O trabalho conjunto teve inicio em 2000, numa articulação no território que contou com o apoio da ECOA, organização não governamental que trabalha na região há mais de 20 anos, onde grupos vulneráveis e invisíveis alcançaram pela primeira vez recursos que viabilizaram o fortalecimento do coletivo no território. Um trabalho difícil de ser apoiado por qualquer outro fundo.”
D. Neusa, da Associação dos Pescadores Artesanais de Miranda, resume em poucas palavras o drama vivido pelos pescadores e extrativistas que habitam dezenas de comunidades ao longo dos rios.
“A gente aqui luta para todos os lados, minha filha! A gente pesca peixe, pesca isca, planta, faz conserva, recebe turista… As mulheres ficam com as tarefas mais pesadas, saem bem cedo de casa e trabalham o dia inteiro com água até a cintura. Mulheres mais velhas, a maioria com 45, 50, 60 anos. É muita dificuldade para dar conta de tudo porque depois de até 10 horas dentro d’água, a gente chega em casa e ainda tem tudo para fazer: limpar, arrumar, cuidar da roupa, fazer a comida. A gente se dá conta de que não tem mais nada a não ser nossa força de vontade.
Mas a gente olha pra traz e vê que melhorou, e melhorou muito!!! Foram muitas conquistas. E isso porque o Fundo CASA apoiou a gente desde o começo, desde o tempo em que ainda não tinha a Associação. Foi com esse apoio que conseguimos os primeiros macacões impermeáveis para trabalhar dentro da água. Isso protegeu as pessoas de doenças, de acidente com cobra. Apoiou o trabalho para melhorar a nossa renda com o melhor aproveitamento das iscas, que antes morriam muito. Depois ainda deu recurso para a cozinha comunitária, pra gente aproveitar os frutos, principalmente a Bocaiúva, que dá aqui na região. E com isso, com a Associação, a gente conseguiu se articular com outros grupos, conhecer outras associações daqui da região, encontrar outros parceiros, outros apoios. É claro que ainda tem muita coisa para se fazer, precisamos ainda de muito apoio. Mas com certeza já somos vitoriosos.”
Ao lado das populações que vivem do rio, o povo da comunidade de Antônio Maria Coelho, não muito longe dali, vive outra realidade: a falta absoluta de água, a destruição de suas matas, a expulsão de suas terras e a poluição que traz doenças.
“Eu nasci aqui em Antônio Maria Coelho, um lugar muito bonito, no pé da serra, com muitos córregos, muitas frutas nativas. Minha família foi para a cidade, mas voltei com 17 anos para cá. A vida na cidade era muito difícil. Por isso eu e meu marido voltamos. No sítio tem a natureza, tudo que a natureza proporciona. A gente faz a agricultura familiar, recolhe as frutas e consegue viver bem. Aqui tinha fruta para todo lado. Mas aí tudo começou a mudar… Mudou da água para o vinho, fomos do paraíso para o inferno.
Na visão dos poderosos, este era para ser um lugar só de exploração das grandes empresas, das mineradoras que extraem ferro: a Vale e outras cinco empresas fizeram portos, grandes fábricas, estradas de ferro para transportar o minério. Não era para ter moradores aqui, não era para ter as frutas, as plantas medicinais… Era para ser só o minério. Tudo começou a ser destruído, o lugar mudou completamente…”
Edil, como é conhecida Edeltrudes Correa de Oliveira, é presidente da Associação dos Moradores de Antônio Maria Coelho e fala do assombro e da indignação de toda a comunidade diante das mudanças. Da vontade de reagir , mas, ao mesmo tempo, a total falta de confiança de que poderiam mudar alguma coisa. Eram pessoas invisíveis, sem voz.
“As autoridades não queriam ouvir a gente… era muito difícil. Mas se a gente não buscasse os meios de sobreviver, como seria? Porque hoje não temos água, os córregos secaram todos por conta dos poços que as empresas abrem para lavar o minério, enquanto nós não tempos água para beber! Dependemos de caminhão pipa. Isso é uma tragédia. As pessoas têm que saber que isso acontece. Além disso tem a doença e a morte provocadas pela poluição.”
Diante da indignação e do impasse, a comunidade se juntou e buscou saídas.
“Então fomos à luta, mesmo sem entender da burocracia, foi com a ajuda do pessoal da ECOA e com o apoio do Fundo CASA que conseguimos formalizar a Associação para correr atrás dos nossos objetivos. Se não tivesse esse primeiro recurso que a gente precisava tanto, no início de tudo, a gente não teria conquistado o que temos hoje.”
Com a Associação, a comunidade se fortaleceu, passou a existir, a ser ouvida! Passaram a ser convocados para as audiências públicas, para encontros e reuniões, vieram outros parceiros, outros projetos, beneficiando a toda a comunidade, direta ou indiretamente.
“Hoje temos a cozinha comunitária equipada com o apoio do Fundo CASA. Com a ajuda de outros parceiros estamos indo atrás de nossos sonhos para ter melhorias nas nossas vidas. As mulheres não tinham perspectiva nenhuma, agora estamos gerando renda com a bocaiuva, o coco da palmeira que só dá nessa região e de onde tiramos farinha, polpa, o doce, o óleo. Os homens se juntaram à luta e são companheiros importantes. Algumas batalhas nós vencemos, como o selo do SEBRAE para nossos produtos. Outras batalhas estamos no caminho da vitória, como no processo de acesso à água.”
Mais do que apoiar um projeto específico, a estratégia por trás dos apoios do Fundo CASA é a combinação dos recursos canalizados para alcançar resultados que, dessa forma, podem ser maiores, influenciando governos e outros parceiros e financiadores na região. O empoderamento das comunidades e o fortalecimento das organizações locais para que confrontem as ameaças e defendam seus direitos a uma vida digna são o único caminho para mudanças reais e duradouras.
Mulheres isqueiras, mulheres indígenas, mulheres artesãs, coletivo de professores da fronteira, placas solares, rádios comunicadores, produção de material de divulgação, oficinas de capacitação, organização associativa e registro em cartório. Foram cerca de 80 projetos apoiados diretamente pelo Fundo CASA na fronteira brasileira do Pantanal, entre 2000 e 2015 (já que os apoios começaram antes de sua constituição formal), criando uma grande rede de comunidades articuladas em torno de seus ideais e necessidades. Como o foco do Fundo CASA são os grandes ecossistemas, apoiamos por volta de outros 50 projetos nos países vizinhos — Uruguai, Paraguai, Bolívia e Argentina — que formam a grande Bacia Paraguay-Paraná.
Além da proteção aos sistemas úmidos da América do Sul, essa união estratégica de forças tem confrontado grandes obras de potencial destrutivo como a Hidrovia Paraguay-Paraná. Desde 1994, a resistência dessa grande aliança segue trabalhando para proteger essa maravilhosa região. Uma rede que opera de forma orgânica, mobilizando energias, habilidades, outros recursos e apoiadores, e conhecimentos para a resolução dos problemas e a criação de soluções.
Fonte: Angela Pappiani / Fundação Casa