A água fria em torno quase não é sentida devido ao grande macacão de PVC. As duas mulheres ao redor se movimentam com destreza enquanto meus passos são cuidadosos e vacilantes. A câmera em minha mão capta todos os movimentos e os ouvidos estão atentos às falas das coletoras de iscas. No fundo da mente, torcia para nenhum animal perigoso aparecer. Mas espera, para entender a cena é preciso retornar algumas horas no dia.
A caminho da coleta
O dia começou às 6h. O objetivo daquele dia era chegar em Porto da Manga, a cerca de 63km de Corumbá-MS, para fazer a entrega de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) para as mulheres coletoras de iscas. Comigo, estava também André Siqueira, diretor da Ecoa. Além da entrega dos macacões, havíamos combinado de gravar uma coleta de iscas. A ideia era entrar na água junto com as isqueiras para produzir um material imersivo. Claramente, também não queria deixar passar a oportunidade de imergir (literalmente) em uma prática tão característica de algumas comunidades do Pantanal.
Durante a jornada de mais de 370Km de Campo Grande até Porto da Manga, era impossível não pensar em algumas preocupações. “E se aparecer uma cobra? E se eu pisar na cabeça de um jacaré sem querer? E se uma arraia me picar? E se eu tropeçar e derrubar o equipamento na água? E se eu não der pé na água?”. Eram os pensamentos que rodavam em minha mente.
Ao chegar em Porto da Manga, diversas mulheres se reuniram para a entrega de materiais. Risadas e conversas me distraíram do que me aguardava depois. Dona Zezé, uma senhora simpática com linhas de expressão que marcam sua história, é coletora de iscas e uma liderança na comunidade. Ela foi responsável por indicar duas isqueiras que poderiam nos ajudar.
Jocilene Soares Paz e Joislene Fernandes Barbosa, as duas apelidadas carinhosamente de Dinhas, foram as escolhidas. Ambas vestiram seus macacões novos e esperaram até que eu vestisse o equipamento emprestado. O macacão ficou grande, mas cumpriu seu papel de proteção. Inicialmente pensei que sairia com as roupas molhadas, mas nem um pingo de água entrou.
Cada passo foi feito com muito cuidado para não tropeçar ou pisar em nada perigoso. O local escolhido como ponto de coleta foi em frente à cozinha comunitária da comunidade, construída com auxílio da Ecoa. Equipadas com a tela de náilon e um grande balde branco, as isqueiras começaram a coletar caranguejos.
As duas mulheres contaram suas histórias. Ambas são isqueiras há tanto tempo que nem se recordam mais da primeira vez que entraram na água para coletar iscas. Passou a ser um hábito, daqueles que nem percebemos. Jocilene é isqueira há 20 anos e Joislene coleta iscas desde os 18 anos. Ambas aprenderam a profissão no meio familiar. Jocilene telava* com seu esposo e Joislene aprendeu com sua mãe.
Telar* é o nome dado para a prática de submergir uma tela de náilon na água para assim pegar as iscas vivas.
Leia também: Equipamentos para a proteção das mulheres coletoras de isca no Pantanal
Coleta de iscas
A coleta de iscas é a principal fonte de renda de algumas famílias no Pantanal. Mas a profissão é trabalhosa e perigosa.
“Pra mim é meu sustento, eu só vivo da isca. A maioria da mulherada vive da isca”, comenta Jocilene.
Existem duas formas de realizar a coleta: quebra e chama. A primeira coleta é realizada no período diurno quando é capturada a maioria das iscas, incluindo peixes e caranguejo. No procedimento, a tela é submersa e erguida rapidamente logo em seguida, para que fique retida parte da vegetação aquática com as iscas.
Já a coleta “chama” tem como principal objetivo a captura de pequenos peixes chamados tuviras e é realizada no período noturno. Nessa modalidade de captura de isca é cortado um espaço suficiente na vegetação aquática para submergir a tela. Com esta submersa, as plantas são recolocadas no local. Para atrair a isca, são jogados cupins por cima da tela. Estalando os dedos na superfície da água, os isqueiros simulam a caída de alimento e ao perceber a presença dos peixes, eles levantam a tela rapidamente para capturá-los.
A coleta de iscas exige que as profissionais fiquem na água por longas horas. As Dinhas comentam que quando coletam caranguejo costumam sair às 7h e retornam às 15h, isso quando não decidem tentar a sorte e ficar por mais tempo em busca de mais iscas. Na coleta de tuviras, costumam sair às 17h e retornam às 22h ou 23h.
Além das longas horas imersas na água, o que pode contribuir para doenças, as isqueiras estão sujeitas a acidentes com animais presentes nas águas, como jacarés, arraias, sanguessugas e cobras. E claro, onças. Por sorte, as Dinhas nunca sofreram acidentes com animais, mas ambas possuem familiares que não tiveram a mesma sorte. Ambas também já ouviram onças sondando durante a coleta.
“Às vezes nós estamos telando e escutamos o barulho da onça. Nós tela sempre com outra mulher, eu e a Zezé, ela [indicando Joislene]” – Jocilene
Equipamentos de proteção
O equipamento adequado é vital para essas profissionais. Desde 2011, junto com o Ministério Público do Trabalho do Mato Grosso do Sul, a Ecoa realiza a distribuição de macacões emborrachados impermeáveis com botas. Ao longo dos anos mais de 600 equipamentos de proteção foram entregues, mas o trabalho da Ecoa com as isqueiras data desde o início dos anos 2000.
Leia também: Coleta de iscas – Base do turismo de pesca no Pantanal
A coleta de isca é a base para outros setores econômicos importantes no Pantanal. A atividade das isqueiras relaciona-se diretamente com a cadeia produtiva da pesca e turismo de pesca.
A atividade foi regulamentada em Mato Grosso do Sul pelo Decreto n. 1.910 de 01/12/1998 e, posteriormente pelo Decreto n. 2.898 de 29/10/2004, que disciplinou a captura e a comercialização de iscas vivas. A garantia da salubridade do trabalho, além do reconhecimento da profissão, faz parte do trabalho da Ecoa.