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Projeto de Lei ameaça sustento de pescadores no Mato Grosso

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Projeto pode colocar pescadores profissionais artesanais em situação de vulnerabilidade. Foto: Nelson Almeida/AFP
Projeto de Lei que proíbe transporte, armazenamento e comercialização de peixes em todos os rios do Mato Grosso ameaça sustento de milhares de famílias que dependem da pesca, principal atividade econômica do Pantanal.
Não ao Cota Zero! O que mata o rio são os grandes empreendimentos como represas e Hidrovia que trarão grandes impactos na água e no ambiente!

Por Michael Esquer, O Eco

O projeto de lei elaborado pelo governo de Mato Grosso que quer proibir o transporte, o armazenamento e a venda de peixes de rios do estado – ou seja, a pesca com fim comercial – ameaça o modo de vida tradicional e cultural de pescadores artesanais. Isto é o que afirma nota técnica assinada por um grupo de mais de 20 pesquisadores, ambientalistas e representantes da sociedade civil. Se aprovada, a prática ficará proibida para todo e qualquer tipo de pescador por um período de cinco anos (2024-2029).

Enviado pelo Executivo Estadual no dia 31 de maio, o PL nº 1.363/2023 teve regime de urgência aprovado na Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT) naquele mesmo dia. Com parecer favorável da Comissão de Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Recursos Minerais (CMARHRM), a proposta foi aprovada em primeira votação dois dias depois, e pode ir à última votação ainda neste mês.

Com a proibição, a proposta permitirá a pesca somente nas seguintes modalidades: pesque e solte; captura de peixes às margens dos rios para consumo no local; e a captura para subsistência (consumo próprio). “Na prática, proíbe a pesca como profissão”, conta a ((o))eco a pesquisadora do Instituto de Biociências da Universidade Federal de Mato Grosso (IB-UFMT), Lúcia Mateus, que é a representante titular da universidade no Conselho Estadual de Pesca de Mato Grosso (Cepesca).

De acordo com a nota técnica, 16 mil pescadores atuam na pesca artesanal em Mato Grosso. Segundo estudo contratado pela Agência Nacional de Águas (ANA), mais de 5 mil estão na porção mato-grossense da bacia do Alto Paraguai (Bap) – que hospeda a planície pantaneira –, onde a atividade movimenta anualmente mais de R$ 38 milhões. Essa modalidade, diz a ANA, é aquela praticada de forma artesanal por pescadores associados à colônias de pesca ou associações de pesca, com finalidade comercial.

“Essas relações materiais e imateriais do pescador com a pesca, gera um sistema socioecológico complexo, que transcende a atividade profissional que está ameaçada pelo PL. Em outras palavras, o que está ameaçado é o modo de vida tradicional e cultural do pescador nas bacias do Paraguai, Amazônica e Araguaia”, aponta a nota técnica. “Os pescadores artesanais […] estão com seus modos de vida ameaçados, com a segurança alimentar vulnerabilizada, pela proposição do projeto de lei”, enfatiza.

Para o Observatório Socioambiental de Mato Grosso (Observa-MT), o PL cava um futuro de vulnerabilidade social para os pescadores que sustentam suas famílias com a venda de peixes.

Como mostrou ((o))eco, para acrescentar e alterar dispositivos da Política Estadual de Pesca, a justificativa apresentada pelo governador Mauro Mendes (União Brasil-MT) foi a “notória redução dos estoques pesqueiros em rios do Estado de Mato Grosso e estados vizinhos, tendo como principal razão a pesca predatória, que acaba por colocar em risco várias espécies nativas”, disse na mensagem encaminhada à ALMT.

A ((o))eco, Luciana Ferraz, representante do Instituto Caracol no Cepesca, conta que o que reduz estoque pesqueiro, além de desmatamento, esgoto, assoreamento, hidrelétricas e mineração, é a má gestão de bacia hidrográfica, que não usa como unidade de planejamento político e territorial a bacia de drenagem.

“A FAO (Organização para a Alimentação e Agricultura, da sigla em inglês) há décadas sabe, e vários pesquisadores já descreveram, que a atividade pesqueira mantém as pessoas acima da linha da pobreza e consegue manter proteína de qualidade na mesa”, explica Ferraz, que é doutora em Ecologia em Recursos Naturais e uma das pesquisadoras que assinam a nota técnica.

Pescadores no rio Cuiabá, em Mato Grosso. Foto: Secom-MT

Minuta desconsiderada pelo governo

Para enviar à ALMT o PL nº 1.363/2023, o governo de Mato Grosso ignorou minuta elaborada pelo Cepesca. Conforme apurou ((o))eco, uma minuta encaminhada pelo conselho ao governo foi discutida por quase dois anos pelos conselheiros. O documento previa a proibição da pesca com fim comercial, mas apenas para a categoria de pesca amadora — recreativa sem finalidade comercial —, e não para todas de forma indiscriminada, como prevê a proposta que tramita na Casa de Leis mato-grossense.

De acordo com o que estipulava o documento, a pesca profissional artesanal ainda poderia transportar, armazenar e comercializar o pescado.

“Nós não temos poder de mandar lei ou […] legislar. Nós temos o poder de assessorar o governador na sua política. Nós fizemos esse papel. Encaminhamos a nossa proposta […] e o governo do estado entendeu que ele mandaria um projeto divergente desse que foi encaminhado pelo Cepesca”, disse Alex Marega, presidente do conselho, em reunião ordinária realizada no dia 1º deste mês, um dia antes do PL ter sido aprovado em primeira votação.

Segundo Marega, o projeto que tramita na ALMT não é a proposta do Cepesca, mas sim do Poder Executivo e do governador do estado, Mauro Mendes (União Brasil-MT) – apesar desta ter contemplado parte da minuta do conselho. “Da minuta, algumas coisas foram mantidas, mas a maior parte dos pontos polêmicos que estão lá não fazem parte da proposta do Cepesca”, disse o presidente do conselho.

Para a pesquisadora do IB-UFMT, o governo não ter considerado a minuta discutida dentro do conselho é uma lástima. “O Cepesca é um fórum oficial e que tem representantes de todos os setores, inclusive do governo”, diz Mateus.

Entretanto, Mauro Mendes (União Brasil-MT) tem a prerrogativa de encaminhar e discutir projetos diretamente com a ALMT, como o fez, afirmou o presidente do Cepesca. “O governador não cometeu nenhuma ilegalidade do ponto de vista de não acatar ou de alterar aquilo que nós propomos. Ele não tem obrigação nenhuma de mandar o nosso projeto para a Assembleia Legislativa no formato que nós mandamos”, defendeu Marega.

Outras manifestações contra o projeto 

A proposta do Executivo Estadual tem desencadeado uma série de manifestações contrárias à ela, sobretudo de organizações socioambientais e de setores ligados à pesca artesanal. Em nota, o Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil (MPP) repudiou a aprovação em primeiro turno do PL na ALMT.

O MPP afirmou que reprova a forma como decisões sobre a vida, cultura, modo de vida e tradições de pescadores artesanais violam o direito à consulta livre e informada, como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Isso é um ataque que fere diretamente o direito dos pescadores e pescadoras artesanais. Nos solidarizamos com os pescadores e pescadoras artesanais do estado do Mato Grosso e ajudaremos tomar as medidas cabíveis”, diz a nota de repúdio.

No início do mês, um grupo de conselheiros que integram o Cepesca, junto com organizações da sociedade civil, também elaborava uma nota de repúdio contra o PL nº 1.363/2023. Nesta segunda-feira (12), a nota já contava com a assinatura de seis conselheiros, além de mais de 20 de organizações socioambientais e de colônias de pesca do estado.

“Caso aprovado, o projeto de lei do Fim da Pesca, ou cota-zero 2, tem potencial de afetar milhares de pessoas em Mato Grosso”, afirma a nota de repúdio.

Segundo o presidente do Cepesca, o documento não reflete a opinião oficial do conselho, uma vez que este, composto por 18 representantes, decidiu por não emitir nenhuma nota sobre o tema, seja ela contra ou a favor do PL.

Da forma como está, projeto pode colocar pescadores profissionais artesanais em situação de vulnerabilidade, apontam organizações. Foto: Nelson Almeida/AFP

Diagnóstico equivocado

Em nota técnica, publicada também na última semana, o PL foi criticado por outro grupo de 12 pesquisadores da UFMT, Unemat, Embrapa e outras instituições. O documento afirma que a proposta parte de um diagnóstico equivocado da pesca: o de que os estoques pesqueiros do estado estariam em declínio.

“Mato Grosso nunca assumiu a responsabilidade de obter um diagnóstico confiável da pesca no Estado. Aqui abrigamos três entre as mais importantes bacias hidrográficas da América do Sul: a bacia do Alto Paraguai, que inclui o Pantanal, a bacia do rio Araguaia e a bacia Amazônica. Infelizmente, não há dados de boa qualidade disponível para essas três bacias”, aponta o documento.

Segundo a nota técnica, as melhores estimativas da produção da pesca comercial de pequena escala foram obtidas apenas para a Bap. No estudo da ANA, mencionado pela reportagem, constatou-se que cerca de 8 mil pescadores profissionais artesanais estão situados na Bap — em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul —, onde a atividade movimenta anualmente cerca de R$ 70 milhões.

“Àquela época, quando foram realizadas, os estudos mostraram que os estoques estudados estavam saudáveis, sem sinais preocupantes de estarem sendo pescados em excesso”, descreve o documento.

Para os pesquisadores que assinam a nota técnica, o responsável pela ausência de um diagnóstico confiável da pesca é o próprio estado, “que, ao longo do tempo, vem se esquivando dessa responsabilidade”.

O documento também chama atenção para o fato de que pescadores comerciais fariam parte da categoria de usuários da pesca mais vulnerável. “Mas é a categoria mais mobilizada e que mais mobiliza a sociedade em geral para as causas em prol da conservação do rio e do recurso pesqueiro”.

A nota técnica aponta que extinguir a presença destes pescadores nos rios os enfraqueceria diante de outros usos das bacias, que afetam a produção pesqueira, como os das hidrelétricas. “O Estado quer eliminar o pescador comercial para favorecer os outros usuários da pesca? Ou quer eliminar o pescador comercial para tirar poder de ação e negociação de todo o setor de usuários da pesca para favorecer os outros usos da bacia hidrográfica?”, indagam os pesquisadores.

Para garantir sustentabilidade e o máximo benefício social da atividade da pesca o ideal seria um ordenamento pesqueiro “baseado em ciência”, aponta o documento.

Piraputanga, espécie migratória de alto valor comercial dentro da bacia do Alto Paraguai. Foto: Sérgio Veludo/Wikicommons

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