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Porto recebe licença prévia para operar no Pantanal e pode trazer mais impactos à região

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Protesto contra a HPP em novembro de 2020 (Foto: Claudia Sala de Pinho – Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira)

Via Le Monde Diplomatique

Apesar de vivenciar uma tragédia ambiental nos últimos anos, o Pantanal continua sendo palco de empreendimentos que podem agravar sua degradação. No último dia 26 de janeiro, o Terminal Portuário de Barranco Vermelho teve a licença prévia aprovada pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente do Mato Grosso (Consema-MT). A decisão ocorreu mesmo com a existência de 111 pendências no Estudo e no Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA). Segundo o Ministério Público do Estado do Mato Grosso (MP-MT), o estudo contém vícios e não considera o tema da hidrovia em sua complexidade. O porto de Barranco Vermelho pretende operar em Cáceres (MT), nas margens do Rio Paraguai, podendo impactar o bioma e a subsistência de comunidades tradicionais.

O processo de licenciamento do porto iniciou em 2016. Em 2021 foi suspenso liminarmente por meio de Ação Civil Pública (ACP) movida pelo Ministério Público Federal (MPF). Na época, o juiz responsável pela ação suspendeu, ainda, o licenciamento do porto Fluvial de Uso Misto, localizado também em Cáceres. A decisão baseou-se no entendimento de que os empreendimentos estavam sendo discutidos e licenciados individualmente, sem levar em consideração os impactos sinérgicos e cumulativos e sem o licenciamento da Hidrovia Paraguai-Paraná (HPP), projeto do qual fazem parte. Também pontuou o não cumprimento dos procedimentos de consulta às comunidades impactadas, definidos pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.

O governo do estado, chefiado por Mauro Mendes (DEM), entrou com um pedido de suspensão da decisão, argumentando que a paralisação do licenciamento traria prejuízos ao estado. O pedido foi acatado liminarmente. O processo segue, mas, após essa última decisão, o referendo do licenciamento prévio do porto Barranco Vermelho foi colocado em votação na reunião do Consema e aprovado por maioria. O projeto portuário será operado pela empresa GPG Serviços Portuários e pretende operar no armazenamento e escoamento de commodities produzidas pelo agronegócio, como a soja.

Uma das principais preocupações de organizações científicas e ligadas à preservação ambiental e à defesa das comunidades tradicionais são os processos embutidos na operação do porto, como as dragagens. A dragagem envolve a escavação do rio para que ele adquira a profundidade adequada para a navegação. O procedimento está associado a impactos como a alteração da qualidade da água, ameaçando espécies aquáticas e a própria dinâmica do rio, além de impactar o modo de vida de comunidades tradicionais que dependem do rio e da biodiversidade para seu sustento. Processos como a dragagem não foram considerados no EIA/RIMA do empreendimento.

O conselheiro do Consema, Lourival Vasconcelos, revisor do processo e membro da organização Fé e Vida, manifestou voto contrário ao licenciamento, recomendando que o pleno do conselho fizesse o mesmo. Em seu parecer, destacou alguns dos problemas do empreendimento. “Em nossa análise, os estudos apresentados descrevem de forma genérica, em sua maioria a partir de dados secundários, os componentes abióticos (aspectos geológicos, geomorfológicos, condição climática, pedologia, hidrologia, entre outros), bióticos (flora e fauna) e sócio economia da região onde se pretende instalar o empreendimento”.

Observou também que “não se considerou em nenhum momento, os impactos socioambientais sobre os ribeirinhos, pescadores, indígenas, turismo de pesca e empreendimentos turísticos existentes a jusante do empreendimento, que serão impactados pela referida Unidade Portuária”, tampouco os prejuízos para a ictiofauna (conjunto de peixes de uma região ou ambiente), cujo ciclo de vida pode ser prejudicado pela dragagem e pela movimentação de balsas.

A responsabilidade pelo licenciamento ficou a cargo da Secretaria de Meio Ambiente do estado (Sema-MT), apesar do Rio Paraguai ser da União. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) seria o órgão competente para o processo, no entanto transferiu a competência para o estado. Na votação do Consema, o Ibama foi um dos quatro votos contrários à licença. Foram 14 votos favoráveis.

Para a Sema-MT, a licença é pontual, e diz respeito somente à operação do terminal portuário, e não à dragagem e à navegação. Por isso afirma que o porto é viável e pode ser instalado. “É um terminal portuário que nós consideramos pontual e por isso os impactos ambientais são pontuais em relação à sua localização física”, disse o secretário adjunto de licenciamento ambiental da Secretaria de Meio Ambiente do MT, Valmi Simão de Lima.

Protesto realizado no ano passado sobre a construção dos portos no Rio Paraguai — Foto: Reprodução
Impactos socioambientais

O projeto do Terminal Portuário de Barranco Vermelho está situado às margens do Rio Paraguai, que enfrenta nos últimos anos o agravamento da seca. Até mesmo pescadores profissionais artesanais, que utilizam pequenas embarcações, têm enfrentado dificuldades de navegação na região. O trânsito de grandes navios preocupa as comunidades, cuja principal atividade de sustento poderá ser prejudicada.

Pescador desde criança, Lourenço Pereira Leite analisa com preocupação a decisão do Consema e aponta impactos que podem ocorrer com a operação portuária. Segundo ele, pescador de terceira geração, os danos não serão apenas locais, mas também ocorrerão no baixo Pantanal. O empreendimento aponta que o impacto será apenas em uma área de 1,3km.  “O nosso rio se encontra muito assoreado, são quilômetros e quilômetros de assoreamento. Eu vejo que não tem água suficiente, e se eles dragarem, a água vai vir para o leito do rio, mas vai acabar com o baixo pantanal, que é ponto de refúgio dos peixes”, observa.

A operação do porto, diz o pescador, pode vir a se somar aos impactos de outros empreendimentos, como as hidrelétricas, associadas ao interrompimento do ciclo reprodutivo dos peixes migradores do Pantanal, que representam 94% da renda dos pescadores profissionais artesanais da Bacia do Alto Paraguai. “Somos mais de mil pescadores em Cáceres. Nosso território de pesca é grande e nós temos necessidade dele porque, às vezes, não conseguimos pegar peixe próximo à cidade. Estamos tendo tanta dificuldade que temos que pescar longe”, conta.

Segundo Lourenço, todos esses projetos chamados de desenvolvimento acabam ameaçando a sobrevivência das comunidades tradicionais. “Parece que eles querem nos extinguir do Pantanal. Hoje eu vivo na cidade, mas porque fui expulso da beira do rio, como tantos pescadores. Nós dependemos do meio ambiente, é através dele que sustentamos toda a nossa família. Não há respeito às comunidades tradicionais, aos saberes tradicionais. Nós não somos contra o desenvolvimento, somos contra fazerem isso sem pensarem nas consequências e sem terem compromisso com o Pantanal”.

O pescador também frisa a precariedade da consulta realizada às comunidades, que segundo a Convenção 169/OIT, deve ser livre, prévia e informada. O EIA/RIMA do porto Barranco Vermelho afirma que não existem comunidades tradicionais no entorno do empreendimento.

O secretário adjunto de licenciamento ambiental da Sema-MT, Valmi Lima, na reunião do Consema, apontou que não foram identificadas comunidades locais nas visitas realizadas pelo órgão. Também disse que o processo de consulta à sociedade foi democrático, com audiência pública presencial, da qual participaram 54 pessoas, e audiência pública virtual, que no pico de visualizações registrou 912 pessoas.

 

Ministério Público do Estado do Mato Grosso questiona a licença

O Ministério Público do Estado do Mato Grosso (MP-MT), em posicionamento assinado pelo titular da Procuradoria de Justiça Especializada em Defesa Ambiental e Ordem Urbanística, Luiz Alberto Esteves Scaloppe, destacou pontos problemáticos no licenciamento do porto. Dentre eles, estão o “desvinculamento das obras dos terminais portuários da instalação da hidrovia do rio Paraguai, contexto agravado pela ausência de estudos e avaliações estratégicas acerca da viabilidade socioambiental do empreendimento como um todo”.

Além disso, há o “descumprimento da Recomendação nº 10/2018 do Comitê Nacional das Zonas Úmidas (CNZU) que recomenda restrição de navegação de grande porte no tramo norte do Rio Paraguai”, tendo em vista que o trecho “é fundamental para manutenção dos recursos pesqueiros em toda bacia hidrográfica bem como dos padrões de inundação da planície pantaneira”.

O documento também pontua o descumprimento de parâmetros “estabelecidos em Termo de Referência no âmbito do processo de licenciamento, o que resulta no grande número de pendências para o andamento do processo de licenciamento” e a desconformidade do• Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) “com o preconizado na Resolução Conama nº 001/1986, por não trazer informações ao público acerca de todos os aspectos do empreendimento”.

 

Ato contra a HPP – (Foto: Comitê Popular em Defesa do Rio Paraguai)

 

Porto Barranco Vermelho e a Hidrovia Paraguai-Paraná

O Porto Barranco Vermelho integra o projeto da Hidrovia Paraguai-Paraná (HPP), proposta pela primeira vez em 1987 com o objetivo de conectar bacias de cinco países: Brasil, Paraguai, Argentina, Uruguai e Bolívia. A HPP pretende ser uma hidrovia de uso industrial, com uma via de cerca de 3.500 quilômetros navegáveis. O projeto surgiu dentro da antiga Iniciativa para Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), visando ampliar a exploração do território pelo agronegócio.

O ponto norte da HPP, onde se encontra Cáceres, é denominado Tramo Norte e é considerado sensível por pesquisadores. Débora Calheiros, da Embrapa Pantanal, estuda desde 1991 o licenciamento da HPP e frisa que a navegação de grande porte no Tramo Norte implica na hidrodinâmica também do Tramo Sul. Além disso, salienta que a Convenção sobre as Zonas Húmidas de Importância Internacional, da qual o Brasil é signatário, não permite navegação industrial que atravesse sítios Ramsar, assim denominadas as zonas úmidas que têm importância ecológica internacional. “A recomendação é expressa na questão da navegação de grande porte no Tramo Norte. Pela Convenção Internacional de Convenção de Áreas Úmidas, esse trecho deve ser mantido livre de navegação industrial. A navegação de grande porte passa por unidades de conservação que são sítios Ramsar, então podemos levar uma denúncia internacionalmente. Considero uma irresponsabilidade tentar licenciar um porto sem levar em conta a questão da conservação do Pantanal, que está prevista na Constituição Federal”, avalia.

 

Secretário afirma que porto será bom para o meio ambiente

O Secretário do Desenvolvimento Econômico do estado do Mato Grosso, Cesar Miranda, conselheiro do Consema, afirmou na reunião que o empreendimento é bem-vindo e que o resultado positivo para o licenciamento é o melhor para o desenvolvimento e para o meio ambiente. “Fico muito feliz de estarmos votando uma licença prévia para investimento de uma empresa que não é nem brasileira. [Ela] está vendo que o MT é o estado da oportunidade, que dá segurança jurídica para o empreendedor”.

Reunião do Consema (Foto Assessoria Sema-MT)

O secretário ainda disse que o Brasil possui a legislação ambiental mais rigorosa do mundo e que “não há investidor hoje que não tenha consciência ambiental”. O Brasil, conforme levantamento do Climate Policy Initiative de 2017, possui, na verdade, uma das legislações mais fortes entre os países agrícolas. No entanto, segundo estudo das Organizações das Nações Unidas (ONU) de 2019, falha em aplicá-la. Recentemente, medidas do governo Jair Bolsonaro também fragilizam a proteção ambiental. Dentre elas, o aumento dos agrotóxicos permitidos na agricultura, a liberação de desmatamento em margens de rios, o desmonte de órgãos científicos e de fiscalização e a tentativa de liberação de garimpos em terras indígenas.

Ao comentar o resultado da votação no Consema, o conselheiro Herman Oliveira, do Instituto Caracol, lamentou que a questão ambiental não seja preponderante nas decisões. “O espaço do Consema, embora importante, do ponto de vista de uma efetividade ambiental não funciona. Nós, organizações legitimamente ambientalistas, estamos minimamente tentando fazer um controle social”.  Herman também frisa dificuldades que as organizações ligadas ao meio ambiente estão tendo para se sustentar, em parte por conta do desmonte do Fundo Amazônia, realizado pelo governo Bolsonaro.

Em relação ao posicionamento da Sema-MT, Herman aponta que é “tão dominada pelo setor de commodities que não há espaço para outras discussões. Então a questão ambiental fica subsumida. Embora haja servidores que têm compromisso, o que é determinante não é o caráter técnico-científico, mas o caráter político”.

Após a aprovação da licença prévia, o processo de licenciamento retorna à Sema-MT. As próximas etapas são a licença de instalação.

 

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