Originalmente publicado em: 03/11/09
NAS ÚLTIMAS semanas, foram abundantes as notícias sobre o projeto hidrelétrico de Belo Monte (PA). Somaram-se às notícias sobre as polêmicas audiências públicas o não menos polêmico parecer da Funai, a expectativa de uma licença pré-anunciada e, sobretudo, as manifestações de índios, ribeirinhos e lideranças sociais locais.
Nesse rol, reiteradas referências ao trabalho realizado por um painel de especialistas, protocolado no Ibama, que tece considerações sobre alguns dos principais problemas da usina de Belo Monte.
O problema de fundo é o planejamento energético. Por um lado, assentado na expansão da oferta, minimiza o gerenciamento e a reflexão sobre a demanda e desconsidera uma visão global sobre o uso extensivo dos rios no contexto de suas bacias, especialmente da bacia Amazônica. Por outro, baseia a sua oferta em um modelo de desenvolvimento suportado pela exportação de eletrointensivos.
Repete-se o mantra: o Brasil não pode viver sem Belo Monte (?). Se é assim, isso deveria ser demonstrado. Por que não o fazem? Porque isso não é demonstrável.
Pois bem, nós, especialistas, debruçamo-nos sobre o estudo de impacto ambiental de Belo Monte, ou seja, sobre seríssimas consequências ambientais, problemas técnicos, indefinições que suscitam dúvidas até sobre a saúde financeira do projeto -a pouca energia efetivamente gerada diante da potência instalada: a energia firme é apenas 39% do total.
Sabemos que todos os empreendimentos hidrelétricos geram passivos ambientais pesadíssimos, ampla e tragicamente comprovados nos estudos sobre a hidroeletricidade no país. Isso, porém, não é motivo para aceitar que o EIA de Belo Monte apresente falhas metodológicas graves e oculte regiões diretamente afetadas, subestimando impactos que incidem diretamente sobre o custo da obra, o risco do empreendimento e o destino de milhares de pessoas.
Ante tamanhas omissões e falhas, evidenciamos a sua insustentável viabilidade. Por quê? Porque havia uma orquestração de discursos sobre uma viabilidade que o próprio EIA não confirma. Fiéis a princípios de ética e precaução, temos a obrigação de dizer para a sociedade que não há certezas técnicas que assegurem a viabilidade da construção de Belo Monte ou determinem o seu custo.
E não compactuamos com as “cegas” decisões geradoras de desastres consumados, como na hidrelétrica de Balbina (AM). Em Belo Monte, destaca-se como paradigmática a situação da Volta Grande do Xingu, considerada pelo Ministério do Meio Ambiente como área de importância biológica extremamente alta (portaria 9, 23/1/07).
Se construída a barragem, essa área poderá sofrer uma redução drástica da oferta de água e do lençol freático, comprometendo os modos de vida dos povos indígenas Juruna, Arara e Xikrin e de milhares de famílias ribeirinhas e destruindo toda a floresta de seu entorno e toda a biodiversidade aquática e terrestre, incluindo espécies endêmicas da ictiofauna e de cavernas que não foram estudadas.
Nem sequer há estudos que possam avaliar completamente o que ali acontecerá, pois o EIA não os fez. Ademais, nenhum centímetro quadrado dessas terras é assumido pelos empreendedores como área diretamente afetada.
Os níveis de água no rio, no trecho a jusante da barragem principal, teriam até cinco metros de diminuição, comprometendo a segurança hídrica dessa região, simulação que fizemos para ter condições responsáveis de pôr a dúvida sobre a mesa -de um projeto que, simultaneamente, alaga e “seca” a Volta Grande do Xingu.
Nosso estudo não objetiva se posicionar contra hidrelétricas, mas apontar problemas complexos de um projeto que se estende desde os anos 1980, mas que não resolve as suas próprias falhas e contradições, sejam elas de engenharia, sejam sociais, sejam ambientais.
Ninguém sabe o custo de Belo Monte. E, além de leis, resoluções e portarias nacionais, recomendações e convenções internacionais referentes à construção de barragens serão desrespeitadas caso a usina vá adiante: Comissão Mundial de Barragens, Princípios do Equador e a convenção 169 da OIT.
Apresentamos nossas considerações ao Ibama, buscando contribuir para um Brasil desenvolvido, justo, equânime, em que a tomada de decisão esteja baseada em avaliações competentes e transparentes.
SÔNIA BARBOSA MAGALHÃES, doutora em antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e em sociologia pela Universidade de Paris 13, é professora da UFPA.
FRANCISCO DEL MORAL HERNANDEZ, mestre em energia pela USP, é pesquisador do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP.