A reaproximação Brasil-China pode azeitar investimentos, inclusive em usinas no rio Cuiabá. Os aportes já somam ao menos R$ 38 bilhões
Aldem Bourscheit, O Eco
Os estados que abrigam o Pantanal receberam investimentos chineses bilionários nos últimos 15 anos, especialmente em infraestrutura. A reaproximação diplomática entre Brasil e China pode engrossar as aplicações e os impactos socioambientais a elas associados.
Os aportes chineses em projetos nos territórios do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul somaram US$ 7,28 bilhões de 2007 a 2021. Em valores atuais, são quase R$ 38 bilhões. O balanço é do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), a pedido de ((o))eco.
A grande maioria (93%) dos gastos foi em energia, como hidrelétricas e linhas de transmissão. Uma fatia bem menor (7%) chegou à agropecuária. Os biomas Cerrado, Amazônia e Mata Atlântica também estão presentes nos dois estados (mapa abaixo).
“Os investimentos concentrados no setor elétrico têm presença marcante de [empresas estatais] gigantes chinesas”, conta Tulio Cariello, diretor de Conteúdo e Pesquisa do CEBC.
Uma delas é a State Grid, que tem 16 mil quilômetros (km) de linhas para transmissão no Brasil. Parte delas cruza os estados pantaneiros. Uma de suas subsidiárias detém o linhão da usina de Belo Monte, do Pará ao Sudeste.
A China Three Gorges gera energia hidrelétrica e eólica em 11 estados. Os projetos incluem as usinas de São Manoel, no rio Teles Pires, entre Pará e Mato Grosso, e de Jupiá, no rio Paraná, entre Mato Grosso do Sul e São Paulo.
A maioria dos ativos internacionais da China Three Gorges e da State Grid está no Brasil, com fatias respectivamente de 60% e de 48%, diz o CEBC.
A chinesa COFCO negocia, armazena, processa e transporta commodities como soja, algodão, açúcar e café, produzidas inclusive nos estados pantaneiros. Ela integra a COFCO Corporation, cuja receita global é de quase R$ 250 bilhões.
O grupo Hunan Dakang tem negócios semelhantes aos da COFCO no Brasil. É dele a companhia de grãos, biodiesel, fertilizantes e agrotóxicos Fiagril, em Mato Grosso. O Hunan também busca janelas para investir em pecuária, levantou ((o))eco.
Em Maracaju (MS), a chinesa BBCA planejava produzir itens à base de milho, como amido, forragem, rações e plástico biodegradável, mas o projeto teria sido abandonado pela empresa, conforme nota da prefeitura municipal.
Adentrando o bioma, a China Energy Engineering Group planeja investir em seis hidrelétricas no rio Cuiabá (MT). O monitoramento é da ONG Ecologia e Ação (Ecoa). O manancial é um dos principais do Pantanal.
Conforme a entidade civil, os aportes foram firmados em Macau (China), em julho de 2021. Os valores iniciais previstos são de quase R$ 2 bilhões e incluem um linhão de 130 km.
“Temo que os aportes chineses avancem sobre a parte alta da bacia do Pantanal, na esteira de outros projetos [de infraestrutura]”, ressalta Alcides de Faria, diretor-executivo da Ecoa.
A ONG avalia que a China pode apoiar usinas no rio Cabaçal (MT). Projetos logísticos em Mato Grosso igualmente interessam ao país, como uma ferrovia para exportar commodities pelo Pacífico.
Reaperto de mãos
O Brasil recebeu metade dos aportes chineses na América do Sul nas últimas duas décadas. Os investimentos podem ser reforçados pela reaproximação Brasil-China promovida pelo governo Lula, mas o foco deve seguir no setor de energia.
“Os aportes em eletricidade têm perfil de longo prazo e demandam constante investimento, por exemplo, na manutenção ou modernização de ativos”, explica Tulio Cariello, diretor de Conteúdo e Pesquisa do Conselho Empresarial Brasil China (CEBC).
O predomínio setorial chinês vem da compra e associação a empresas brasileiras para vencer leilões do setor elétrico. O país aproveitou a queda de aportes internos e externos para consolidar globalmente suas empresas, analisa Maria Elena Rodriguez, do BRICS Policy Center.
“A queda de investimentos desde a crise financeira internacional de 2008 foi acentuada pela Lava Jato, abrindo mercados externos às companhias chinesas”, descreve a pesquisadora.
O apetite asiático pode ampliar aplicações em transportes rodoviário, ferroviário e fluvial, em inteligência artificial, comunicação e automação, além de no agronegócio, como em infraestruturas logísticas e para armazenagem.
“Os estados pantaneiros compram equipamentos e insumos da China, como agrotóxicos, à qual vendem boa parte da sua produção de grãos e carnes”, lembra Alcides de Faria, diretor-executivo da ONG Ecologia e Ação (Ecoa).
Aportes e negócios foram pautas fortes da recente visita de governistas e empresários daqui ao país asiático. A comitiva teve uma centena de representantes apenas do agro. “Nossa exportação de produtos primários vai quase toda pra China”, lembra Maria Rodriguez, do BRICS Policy Center.
Pelas negociações passa a batata quente da guerra da Rússia contra a Ucrânia. Outro grande parceiro comercial, os Estados Unidos esperam que o Brasil se posicione contra o conflito. Mas o país deve se manter neutro e assegurar boas relações com a China, próxima do governo Vladimir Putin.
“A posição autônoma do Brasil me parece correta, pois o país é importante no entorno regional e tem peso econômico em grandes mercados internacionais, como o agrícola e o energético”, avalia Cariello, do CEBC.
A expectativa de aportes ao país cresce com Dilma Rousseff na presidência do Banco dos BRICS, sigla de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Baseada em Xangai (China), a instituição já investiu quase US$ 33 bilhões numa centena de projetos no bloco, sobretudo de caráter sustentável.
O apoio chinês a iniciativas como agropecuária de baixo carbono pode ocorrer também via Banco dos BRICS. “Mas é imprescindível que sejam apresentados projetos exequíveis pelo empresariado”, arremata Cariello.
Na reaproximação Brasil-China também deveria ser negociada a exportação de itens com maior valor agregado e menor impacto socioambiental, além de ampliar a transferência de tecnologias desde o país asiático, prega Maria Elena Rodriguez, do BRICS Policy Center.
“Não podemos seguir vendendo apenas farelo de soja. Exportar produtos processados e com maior valor agregado ajudará o país a sair do lugar em que nos colocaram, de mero monoexportador”, ressalta a pesquisadora.
Impactos em voga
Os prejuízos ambientais e sociais de projetos com recursos chineses dependem das leis e capacidade de fiscalização de cada país alvo. Ao mesmo tempo, a própria China não atende a diretrizes internas e internacionais de sustentabilidade nos investimentos de suas estatais.
“O país não monitora amplamente a atuação de suas empresas. Há muitos projetos prejudicando comunidades indígenas e tradicionais sem consulta prévia”, destaca Elena Rodriguez, do BRICS Policy Center.
A China é parte da Organização Internacional do Trabalho desde 2001, mas não ratificou sua Convenção 169. Ela prevê que povos indígenas e tradicionais tenham uma “consulta prévia e informada” sobre obras que afetem suas vidas.
Para Alcides de Faria, da Ecoa, proteger os ambientes naturais do país garantirá água e alimentos à população, além de conservar a biodiversidade e o clima. “No caso do Pantanal, trata-se de proteger uma parte única e de alto valor ambiental, econômico e social do Brasil, Bolívia e Paraguai”, lembra.
Enquanto isso não ocorre, crescem os prejuízos socioambientais ligados a investimentos chineses em nove países da América Latina, mostra um relatório do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas (ONU).
Os autores do trabalho ressaltam a falta de esforços dos investidores chineses para evitar impactos socioambientais na região.
Os projetos de infraestrutura, geração de energia, mineração, exploração de petróleo e gás atingem nove países da região. Do Brasil, a hidrelétrica de São Manoel é listada por impactos em peixes migratórios no fluxo das águas do rio Teles Pires, um afluente dos rios Tapajós e Amazonas.
Em 2018, o Ministério Público Federal (MPF) pediu a suspensão das obras da usina por descumprir o licenciamento ambiental e por prejudicar aldeias indígenas, como dos povos Kayabi, Apiaká e Munduruku. Todavia, o projeto foi finalizado.
“O Brasil ainda tem um núcleo legislativo preservado, mas muitas normas e leis [socioambientais] foram flexibilizadas nos últimos anos”, lembra Elena Rodriguez, do BRICS Policy Center e uma das autoras do estudo.
Para Alcides de Faria, da Ecoa, esse cenário perigoso para os direitos ambientais e sociais brasileiros pode ser revertido com o fortalecimento da democracia e das instituições públicas brasileiras.
“O prometido por Lula na campanha eleitoral e na COP27 [do Clima, no Egito], além da nomeação de Marina Silva como ministra do Meio Ambiente, indicam novos horizontes à conservação no Brasil e no Pantanal”, avalia.
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