Aposta nuclear da Argentina causa dúvidas

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Texto originalmente publicado em: 31/10/06

A Argentina convoca engenheiros, químicos, físicos, técnicos e especialistas em comunicação e cuidados ambientais para ocupar vagas na indústria nuclear, paralisada desde os anos 90. Diante deste entusiasmo, ativistas se perguntam se desta vez haverá melhor segurança e maior transparência.

Apesar de um dos argumentos para impulsionar o renascimento da energia nuclear no país ser a necessidade de atenuar a mudança climática provocada pelos combustíveis de origem fóssil, a maioria dos ambientalistas considera que esta fonte é potencialmente perigosa e produz uma ameaça latente de longa duração, como o lixo radioativo.

Mas se forem consultados especialistas nessa atividade, esses não duvidam em afirmar que a energia atômica é a mais limpa e segura do mundo. O governo do presidente Néstor Kirchner optou por ouvir este último grupo e em agosto anunciou um plano de reativação de centrais nucleares e a implementação da produção de seus insumos: água pesada e urânio enriquecido. A Argentina é pioneira na produção de energia nuclear na América Latina. Na metade do século XX, o Estado começou a investir em pesquisa e desenvolvimento e, em 1974, foi inaugurada a primeira central atômica da região, Atucha I, que produz 357 megawatts e fica na província de Buenos Aires.

Em 1984, foi inaugurada a segunda central, Embalse, na província de Córdoba, fornecendo 648 megawatts. Já em 1981 começou a construção de Atucha II, na mesma região da primeira, mas ficou inconclusa em 1994 por falta de fundos e vontade política do então governo direitista de Carlos Menem (1989-1999). O projeto original argentino contemplava construir seis reatores no total. Mas o plano foi truncado. Nos anos 80, a razão do desinteresse foi a abundante oferta de gás natural, e na década de 90 foi a decisão do Estado de se retirar de uma atividade que exigia grandes investimentos.

Menem tirou as centrais nucleares da órbita de seu organismo-mãe, a Comissão Nacional de Energia Atômica (CNEA), em 1994, com a intenção de leiloá-las. A oferta fracassou e a operação delas ficou para a Nucleoelétrica SA, financiada pelo Estado. Esta paralisia se sente na oferta de energia. A contribuição nuclear para a matriz elétrica da Argentina caiu de 15% nos anos 80 para 8% atualmente. Agora, o governo de Kirchner pretende finalizar Atucha II até 2010, com 745 megawatts, prolongar a vida útil tanto de Atucha I quanto de Embalse, e analisar a construção de uma quarta central. Também foi anunciada a colocação em marcha de uma produtora de água pesada e o reinício da geração de urânio enriquecido.

Em conversa com a IPS, o engenheiro Darío Jinchuk, porta-voz da CNEA, admitiu que o plano é um forte apoio para a atividade. “Nos anos 90 foram congeladas as vagas na CENEA e hoje a média de idade é de 54 anos. Das cinco mil pessoas que trabalhavam no pico da atividade, restam apenas 1,9 mil”, afirmou. Muitos dos recursos humanos formados aqui com bolsas estatais foram para o estrangeiro ou mudaram de setor. A convocação para preencher cerca de 60 vagas e a oferta de 68 bolsas está mobilizando o setor.

São necessários engenheiros nucleares, mas também especializados em engenharia civil, química, industrial, ambiental, eletrônica e mecânica. Também licenciados em física, química, contadores, especialistas em seguro ambiental, bem como técnicos para operar centrais, estudantes avançados nessas áreas e advogados especialistas no tema, além de relações públicas. Para Jinchuk, o relançamento da atividade segue a linha internacional e necessidades locais. Entre as primeiras mencionou o horizonte de curto prazo para as reservas de hidrocarbonetos, seu preço cada vez mais alto, a instabilidade das regiões onde esses recursos se concentram e seus efeitos no meio ambiente.

Na Argentina, além desses fatores, há outros que somam a favor de reimpulsionar esta indústria. “O país cresce ao ritmo de 8% ao ano e a demanda energética aumenta entre 4% e 5% no mesmo prazo”, explicou o porta-voz da CNEA. “Os empresários quase não investem, e por isso o Estado decidiu fazê-lo”, acrescentou. E não somente através das centrais nucleares tradicionais. Jinchuk disse que finalmente haverá orçamento para o protótipo de um reator pequeno que produza eletricidade. A Argentina fábrica e exporta reatores para produzir radioisótopos, mas a CNEA projetou um para a produção de eletricidade que ainda está em planejamento.

A respeito da segurança, garantiu que “a tecnologia melhorou muito” desde os anos 80. “Os sistemas de segurança são redundantes e com múltiplas barreiras de contenção. Há sistemas passivos que não precisam ser acionados”, afirmou. Sobre os temores dos ativistas que criticam o governo pela falta de estudos de impacto ambiental na hora de prolongar a vida das centrais que estão prontas para sair do circuito, engenheiro Jinchuk disse que se trata de uma pratica habitual. “Nos Estados Unidos há 102 centrais e a metade terá sua vida útil prolongada”, afirmou.

Mas há outras dúvidas ainda sem resposta. As centrais nucleares parecem ter nascido com uma rejeição congênita ao controle da sociedade, um fator que as torna mais temíveis. A IPS tentou durante uma semana falar com um membro da direção da Nucleoelétrica SA (NA-SA), mas não conseguiu passar do encarregado de relações públicas. O site da empresa na Internet, em construção, tampouco fornece fatos em profundidade. “Há 12 anos que NA-SA está gerando energia limpa e segura”, afirma o slogan que dá as boas-vindas ao espaço virtual com uma tranqüilizadora música de fundo.

Jinchuk admitiu que o grande fantasma que persegue a atividade é o acidente de 1986 em Chernobyl, na Ucrânia, ainda sob o domínio central da hoje extinta União Soviética. “Não houve outro acidente dessa gravidade desde então, com perda de radiação, e o reator não contava com a segurança necessária”, garantiu. A prova de solidez da indústria, disse, é que no mundo funcionam 443 centrais nucleares e há outras 33 em construção, sem um acidente. “Toda atividade humana tem impacto ambiental, e esse impacto será maior ou menor segundo o controle feito pelo Estado. O Estado deve velar para que a atividade seja feita dentro das normas de segurança adequadas”, ressaltou. Na Argentina, a responsabilidade de fiscalizar a operação da atividade nuclear é a Autoridade Regulatória Nuclear, criada em 1996.

O certo é que com a futura colocação em funcionamento de Atucha II, a contribuição nuclear para a matriz energética poderá passar de 85 para 12%, sempre e quando a energia de outras origens não aumentar, uma alternativa descartada. O governo convocou os empresários para a construção de novas centrais térmicas e está investindo em hidrelétrica. “O interesse dos que trabalham na indústria nuclear é chegar a 17%, que é a média mundial de energia dessa origem, e o ideal seria 35%, que é a média européia”, afirmou. Na França, quase 80% da energia são produzidos em centrais atômicas.

(Foto de capa via Wikimedia Commons)

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