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Barragens e o Pantanal: a longa luta pelos rios da Bacia do Alto Paraguai

22 minutos de leitura

Alcides Faria, Diretor Executivo da Ecoa

Alíria Aristides, jornalista e coordenadora da comunicação da Ecoa

 

Sem dúvida, o dia 24 de agosto de 2022 representa um marco na história do Pantanal. Nesta data, os deputados do Mato Grosso derrubaram o veto do governador ao Projeto de Lei que proíbe a construção de barragens no rio Cuiabá – 20 votos a 3.  

O resultado é o desfecho de um longo processo envolvendo pesquisadores, Ministério Público Federal, Ministérios Públicos Estaduais, pescadores, organizações da sociedade civil e mesmo organismos governamentais.  

Rio Cuiabá livre (Foto: Aguinaldo Silva)

O longo caminho até o momento histórico 

– Por volta dos anos 2000, a Coalizão Rios Vivos e a Rede Pantanal, articulações que a Ecoa secretariava, iniciaram estudos sobre a construção de barragens para geração elétrica na Bacia do Alto Paraguai (BAP) e seus efeitos sobre o Pantanal 

Textos produzidos trouxeram o entendimento de que construção de represas na parte alta da bacia promoveria uma completa alteração dos sistemas hídricos e, em consequência, do funcionamento biológico natural do Pantanal. Os efeitos econômicos seriam desastrosos sobre a pesca e o turismo.  

– Levantamento da Coalizão Rios Vivos mostrou que em 2002 existiam apenas nove barragens construídas em toda a Bacia. Em 2008 o número de instaladas, entre Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), Centrais Geradoras de Hidroeletricidade (CGHs) e Usina Hidrelétrica de Grande Porte (UHE), chegou a 29. Contabilizando, também, os projetos previstos e em execução o total alcançaria 115. Hoje são 180.  

 – Em 2009 a Embrapa Pantanal publicou o documento intitulado “Influências de Usinas Hidrelétricas no Funcionamento Hidro-Ecológico do Pantanal Mato-Grossense – Recomendações”, trabalho liderado pelas pesquisadoras Débora Calheiros e Elizabeth Ardnt, texto este que é um marco na compreensão do quadro das barragens na BAP.

– Em maio de 2009 o Ministério Público Federal (MPF) instaurou Inquérito Civil e propôs Ação Civil Pública sobre a construção de barragens hidrelétricas na Bacia do Alto Paraguai. A Ação teve como base vários documentos, dentre eles os da Rede Pantanal e a Carta de Recomendação elaborada por estudiosos, organização governamentais e não-governamentais durante a VIII Conferência Internacional de Áreas Úmidas, em julho de 2008 em Cuiabá – MT, que resultou na publicação da Embrapa.  

– No dia 20 de julho de 2010 o Ministério Público Federal realizou Audiência Pública sobre os “Empreendimentos hidrelétricos na Bacia do Alto Paraguai – A exploração energética e a integridade ecológica do Pantanal”. Tal evento deu base para a primeira batalha jurídica através de ação proposta pelo MPF contra as Secretarias de Meio Ambiente de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, Ibama e Ministério do Meio Ambiente. A Ação obteve ganho na Primeira Instância da Justiça Federal, mas foi suspensa por uma liminar que vigorou até pouco tempo.  Um marco no conteúdo foi a apresentação na necessidade de realização de uma Avaliação Ambiental Estratégica. O MPF seguiu atuando. Em 2017 lançou o Grupo de Trabalho Pantanal, o qual tinha como um dos focos os efeitos das represas sobre a planície pantaneira. 

Em 2010 a Rede Pantanal publicou o trabalho “Fio d’água”, do pesquisador Pierre Girard, como parte do documento Cenários Pantaneiros: Hidrelétricas na Bacia do Alto Paraguai (p. 27-29). Este estudo – até hoje uma referência – analisa o caso do rio Jauru, afluente do rio Paraguai, e as 6 represas existentes àquela época. É um caso emblemático, pois destruiu os meios de sobrevivência de centenas de pescadores e não há uma regulagem da vazão de água, alternando entre grandes cheias e zero vazão, repentinamente. A partir do artigo de Pierre Girard, a Ecoa continuou acompanhando o caso do rio Jauru, incluindo discussões com pescadores da região. Em 2017 publicou o vídeo “O rio não tem mais peixes” – As represas no rio Jauru”, e outros trabalhos no marco da agenda Ecoa Clima Pantanal. 

– A Ecoa desde o início dos anos 2000, ao identificar os riscos das represas em seu conjunto, atuou através de monitoramento, articulação, investigação e mobilização social. Os efeitos sobre a bacia e o Pantanal estavam ‘escondidos’ sob o apelido de ‘Pequenas Centrais Hidrelétricas’, muitas das quais não são nada ‘pequenas’, afora o que o resultado sinérgico conjunto delas em cada sub-bacia nunca era avaliado. 

– Levantamentos realizados indicaram que a construção das represas na BAP dependia principalmente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Participante de um grupo de organizações que monitoravam o Banco, a Ecoa passou a discutir com diretores casos específicos de impactos e apresentando razões para que não mais seguissem financiando represas na região. Chegou-se, inclusive, à elaboração de um rascunho de proposta para um Plano de Mitigação em municípios onde o Banco havia financiado represas.  

– Com a Resolução 152, de 17 de dezembro de 2013  o Conselho Nacional de Recursos Hídricos decidiu pela “elaboração do Plano de Recursos Hídricos da Região Hidrográfica do Paraguai – PRH Paraguai e a constituição de Grupo de Acompanhamento da elaboração do PRH Paraguai … cabendo a Agência Nacional de Águas-ANA, a elaboração do plano”. A Rede Pantanal, tendo assento no Conselho através da pesquisadora Débora Calheiros e do FONASC – Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas, teve participação ativa na aprovação Resolução.  

– A Resolução levou a Agência Nacional de Águas (ANA) a suspender até maio de 2020 a emissão de autorizações para implantar novas hidrelétricas na BAP. A ANA informou que a suspensão se estenderia, pelo menos, até a conclusão de estudo, iniciado em novembro de 2016. O objetivo do estudo era identificar os efeitos socioeconômicos e ambientais da implantação das barragens “sobre os demais usos da água e sobre os próprios recursos hídricos, como comprometimento da qualidade das águas ou alteração do regime hidrológico (chuvas)”. A agência considerou “novos empreendimentos hidrelétricos” aqueles que não estavam em operação comercial até 18 de julho do ano.  

– O Estudo contratado pela ANA, coordenado pela Embrapa Pantanal/Fundação Eliseu Alves através do pesquisador Agostinho Catella, contou com vários pesquisadores de diversas universidades: Universidade Estadual de Maringá – UEM, Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul – UEMS, Universidade Federal do Mato Grosso – UFMT, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – UFMS, Universidade Federal do Paraná –  UFPR, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Universidade de Brasília – UnB, Universidade do Estado de Mato Grosso –  UNEMAT, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.  

– Catella assim resume o feito: “O Estudo foi coordenado pela Embrapa Pantanal e realizado de 2016 a 2020, junto à Agência Nacional de Águas e Fundação Eliseu Alves. Para realizar um estudo tão complexo numa área tão extensa, reunimos uma grande equipe multidisciplinar com 23 instituições, 253 pessoas, 83 pesquisadores, 75 estudantes e 95 técnicos.” 

 – O resultado do Estudo, inédito no Brasil, ampliou os conhecimentos sobre a BAP e mostrou, claramente, os efeitos sobre a ictiofauna e a repercussão, por consequência, sobre a vida no Pantanal. Os peixes são a maior fonte de geração de renda e trabalho no Pantanal. 

– Em 2018, antes da finalização dos estudos científicos, houve ainda a publicação realizada por Débora Calheiros e Solange Ikeda, pesquisadoras da Rede Pantanal.

 – Ao término do Estudo a Ecoa, juntamente com a Agência Nacional de Águas, promoveu apresentação pública sobre seus resultados através das redes sociais, obtendo, com o evento, mais de mil visualizações. A divulgação dos resultados para a sociedade local, em especial povos e comunidades tradicionais, foi prejudicada pela pandemia de Covid-19, mas sua realização pelo CNRH/ANA ainda será realizada.

Mapa final dos Estudos Científicos, com a localização de onde se pode ou não construir hidrelétricas

 -Internacionalmente o trabalho também passou a ter repercussão, sendo um exemplo a publicação no The Conversation do artigo  “Hydroelectric dams threaten Brazil’s mysterious Pantanal – one of the world’s great wetlands”. 

 – Com o trabalho de investigação desenvolvido ao longo dos anos e o consequente acúmulo de dados, a Ecoa desenvolveu um Mapa Interativo sobre represas na BAP. O trabalho, coordenado pela pesquisadora Silvia Santana, colocou luz sobre os empreendimentos, ampliando os conhecimentos sobre a própria bacia e seus rios, além dos efeitos cumulativos das barragens. A versão mais completa foi lançada em 2017, sendo constantemente atualizada. Contém levantamentos detalhados de 12 sub-bacias. Sua concepção e estruturação atual foi realizada pela comunicadora Iasmim Amiden e o biólogo/mestrando Thiago Miguel. Somou-se a este trabalho, o levantamento feito pelo biólogo Me. André Luiz Siqueira, a socióloga Me. Nathalia Ziolkowski e a bióloga Me. Vanessa Spacki, fruto de extenso trabalho de campo durante a execução do Projeto Clima Pantanal. 

– Uma mostra da sequência do trabalho foi a apresentação realizada em audiência pública na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara do Deputados sobre “As pequenas centrais hidrelétricas – PCHs e o Licenciamento Ambiental“, em outubro 2019. 

Em maio de 2021, organizações que atuam em defesa do Pantanal tomaram ciência que a Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso (SEMA/MT) deveria decidir se aprovaria a licença de seis barragens no rio Cuiabá.  

 – Em junho de 2021, aconteceu a Audiência Pública convocada pelo deputado estadual Lúdio Cabral para apresentar ao Legislativo de Mato Grosso a ameaça das barragens a serem instaladas no rio Cuiabá. Junto com outros pesquisadores e organizações da sociedade civil, a Ecoa participou da apresentação feita no evento.    

– O vereador Eduardo Magalhães apresentou na Câmara Municipal de Cuiabá, em julho de 2021, o Projeto de Lei proibindo a construção de usinas hidrelétricas na bacia do rio Cuiabá nos limites municipais. O texto do projeto foi embasado em publicações da Ecoa para ciar o PL, bem como contou com apoio técnico direto de Paula Isla, membro da organização, para pareceres do processo, bem como, de diversos parceiros da Rede Pantanal, como o Pesquisação e Internacional Rivers.

– Em dezembro de 2021 o Projeto de Lei foi aprovado pelos vereadores de Cuiabá e no mesmo mês  sancionado pelo prefeito.   

 – Ainda em novembro de 2021, a Secretaria de Meio Ambiente do estado de Mato Grosso divulgou parecer contrário ao licenciamento das represas. O posicionamento aconteceu em resposta à Ação Civil do Ministério Público de Mato Grosso que visava proteção e conservação das baías de Chacororé e Sinhá Mariana. A Ação incluía a suspenção de licenciamento de novos empreendimentos hidrelétricos e foi embasada nos estudos  da Agência Nacional das Águas, citados anteriormente. 

–   No dia 18 de fevereiro de 2021 a Ecoa preparou ofício ao governador do Mato Grosso, Mauro Mendes, expondo os graves problemas que acarretariam a construção das 6 represas, concluindo que muitos dos principais estudiosos e especialistas na região participaram dos debates sobre as conclusões dos Estudos, concordando na necessidade de preservação do rio Cuiabá, tão caro para a cidade de Cuiabá e sua cultura. Não permitir seu represamento, mantendo-o livre é um ganho enorme para o Pantanal, a cidade de Cuiabá, o estado de Mato Grosso e o Brasil”.  

 – Concomitante, a Ecoa solicitou ao deputado Wilson Santos, então vice-presidente da Assembleia Legislativa de MT e seu presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Redação, a entrega pessoal do Ofício ao governador, ressaltando que “a Ecoa, a Rede Pantanal e dezenas de outras organizações, entendem que a construção das represas contribuirá para a perda de capacidade dos peixes migradores se reproduzirem, acarretando prejuízos ambientais, econômicos e sociais”. 

– O deputado Wilson Santos a seguir apresentou, em agosto de 2021, Projeto de Lei  proibindo a construção de barragens em toda bacia do rio Cuiabá. A Assembleia o aprovou em maio de 2022. Enviado ao governador Mauro Mendes, este o vetou integralmente, o considerando inconstitucional.  

– A mobilização e articulação de diferentes setores da sociedade mato-grossense foi executado desde o início da campanha contra barragens. Este importante e amplo trabalho foi realizado sob a coordenação de Nilma Silva, empresária de Cuiabá e presidente da Associação do seguimento de Pesca. Além disso, contou com a participação ativa da Ecoa e da Rede Pantanal, através da doutoranda Paula Isla, juntamente com o Fórum de Meio Ambiente de Mato Grosso, da SOS Pantanal, do Instituto Gaia, do Instituto Centro de Vida, do FONASC e pastorais da Igreja Católica. Os pescadores e suas entidades estiveram entre os primeiros a mobilizarem-se por saberem o quanto sua vida e sobrevivência seria afetada pelas barragens. 

– Com apoio das outras organizações parceiras, a Ecoa também estruturou e executou um plano estratégico de comunicação que aconteceu de forma complementar ao trabalho de articulação e mobilização popular. Além da divulgação de cada etapa da batalha contra barragens, a comunicação também focou na divulgação da ameaça das represas com foco principalmente na população cuiabana. A partir da comunicação e da mobilização, os impactos das barragens ganharam espaço na mídia local e nacional. Foram dezenas de reportagens, tanto online em sites e redes sociais, como em entrevistas de rádio, televisão e jornal (online e impresso). 

 – No dia 24 de agosto de 2022, a decisão final sobre o veto do governador foi levada à sessão da Assembleia. O momento histórico contou com a presença de 600 pessoas que lotaram as cadeiras do local. Eram em sua maioria pescadores e pescadoras que vieram de todo o Mato Grosso para fazer suas vozes serem ouvidas. E elas foram: em coro, os presentes pediam a derrubado do veto.  Um dia após o resultado, o governador Mauro Mendes afirmou que não deve judicializar a questão

A pressão popular foi fundamental para a vitória que se seguiu. Marcando a história, os deputados derrotaram por 20 votos a 3 o veto governamental. O rio Cuiabá, por fim, estava livre de represas! 

Até chegar nesse momento, foi necessário um árduo e longo caminho, que exigiu muita luta e mobilização do povo. Mas valeu a pena e a vitória nos inspira a seguir fortalecidos e esperançosos na luta por um Pantanal livre de barragens.  

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