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O dia em que represas foram proibidas no rio Cuiabá

10 minutos de leitura

Por Paula Isla Martins

Cheguei em Cuiabá na noite do dia 21 e fui direto para o hotel.

De madrugada, o celular toca: era Nilma, uma das principais articuladoras da campanha contra as barragens e presidente da Associação do Segmento de Pesca do Mato Grosso, para combinar os últimos detalhes. Levantei cedo, tomei café e logo na saída do hotel vejo a capa do jornal A Gazeta anunciando que o dia da votação se aproximava e mostrando para a população um pouco sobre os danos que elas causariam para a região.

Fui me encontrar com Nilma e às 7 horas da manhã o clima já estava agitado. Tudo acontecia ao mesmo tempo: estávamos controlando notas de vendas, fornecedores, recebendo mil ligações. Enquanto isso Nilma também carregava suas filhas gêmeas no colo. Ligamos para todos os fornecedores, locação de ônibus para confirmar os horários e pontos de encontro, carro de som, organização do evento.

Nilma, à esquerda, e Paula: grandes articuladoras na campanha contra barragens no rio Cuiabá

No dia seguinte, fui com o professor de história Oscar panfletar no centro e conversar com os lojistas. Fomos muito bem recebidos por lá, ganhei um café e junto com a panfletagem tive a honra de ter uma aula particular sobre a história de Cuiabá e ainda visitar um museu de antiguidades.

À tarde, fui me encontrar com o professor Juacy e o pessoal da Pastoral da Ecologia Integral na Assembleia Legislativa de Mato Grosso. A ideia era irmos juntos de gabinete em gabinete conversar com os deputados que iriam votar o veto da Lei no dia seguinte. Fomos em todos os gabinetes, porém como estamos em período eleitoral, encontramos poucos deles no local. Quando não os encontrávamos, falávamos com os chefes de gabinete e entregávamos um Ofício explicando os motivos pelos quais pedíamos que vetassem o veto da lei que proibia a construção de represas.

Depois de lá, fomos com o pessoal da Pastoral para a casa do Juacy. Nas conversas, descobri que ele foi militar, professor, filósofo e morou muitos anos nos Estados Unidos. Vi uma imensidão de livros e me perguntei por quanta coisa aqueles cabelos brancos já tinham passado e quanto tempo ele teria passado lendo todos aqueles livros. Eram realmente muitos. Vi as fotos das suas filhas e conheci um pouquinho da sua história. Foi uma conversa muito gostosa e tranquila, até esqueci d tsunami que seria o dia seguinte.

Pescadores chegam na Assembleia Legislativa

Próximo das 21h, fomos todos para o ato na ponte do rio Cuiabá com um grupo de mais de 200 ciclistas. Paramos a ponte, professor Juacy e o Deputado Wilson Santos discursaram rapidamente sobre a ameaça das barragens, registramos o momento e em seguida liberamos a ponte. Em seguida, fui descansar para o dia que seria decisivo pro futuro do rio Cuiabá.

Acordei com alguns raios de sol na janela, fui olhar o celular para ver a hora: apagado. Apesar de estar ligado na tomada, o carregador tinha parado de funcionar. Tomei um susto pensando que horas seriam e liguei para a portaria, mas ainda eram 5:20 (e eu tinha colocado para despertar 5:30!). Pulei da cama, tomei banho e desci para o café. Lá pedi para a moça que organiza o café um carregador e ela conseguiu um com alguém da cozinha.

Tomei o café enquanto o celular carregava e fui lá na frente do hotel ver o jornal. A capa já anunciava o que estava prestes a acontecer: a votação do veto era a capa do jornal A gazeta do dia 24 de agosto de 2022.

 

Celular carregado, fui cedo para a Assembleia Legislativa. Cheguei cedo demais, ninguém tinha chegado ainda. a Nilma chegou correndo com as bandeiras e as camisetas, entramos na sala do deputado, deixamos as bolsas e subimos para amarrar as bandeiras na sala da votação. Amarramos as bandeiras e faixas por toda a sala de votação. Quando terminamos, os pescadores começaram a chegar. Eram muitos. Começamos a distribuir camisetas e nos revezar para buscar os grupos e orientar onde era a sala.

Ônibus e mais ônibus começaram a chegar, Nilma começou a agitar a todos com o microfone. Uma das colônias veio fazendo uma passeata, música tocando, pessoal animado, casa lotada. Lotamos a Assembleia Legislativa de Mato Grosso. Mas ainda tinham vários ônibus para chegar, pessoas que vieram de longe ver a votação e manifestar seus desejos. Com justificativa de superlotação, os seguranças passaram a impedir a entrada de outras pessoas. Mas não podíamos simplesmente falar que não poderiam acompanhar este momento histórico. Após negociação com segurança e saída do pessoal da organização para que os pescadores as portas foram liberadas mais uma vez.

No meio de toda essa loucura, ainda encontrei colegas de outras ONGs que também estão na campanha, como o Gustavo da SOS Pantanal, Fernando da Panthera, Laís e Herman do Formad e o pessoal da Ecotrópica, todos na expectativa do que teríamos por vir neste dia.

A sessão começou, mas os vetos não iriam ser feitos logo no início. Seguimos esperando apreensivos. Nilma começou a puxar gritos de “guerra” e foi seguida por todos que estavam no recinto. Os vetos só começaram após as 13h. Mesmo ainda não sendo o veto referente às barragens, o pessoal começou a ficar animado, gritando e levantando da cadeira.

Próximo das 14h, começou o nosso veto e aquela multidão que gritava se calou por alguns segundos durante a votação. Os poucos segundos em um silêncio profundo e frio foram seguidos por uma explosão de gritos de vitória. Vencemos! Todo mundo pulando, Nilma rezando, pessoas chorando. Foi emocionante. Depois de tantas derrotas na área ambiental que tivemos nos últimos anos, essa foi uma vitória com um sabor ainda mais importante, talvez um indício de que estamos virando a chave e passando de uma sociedade predatória para uma sociedade mais sustentável. De passinho em passinho, de vitória em vitória.

Foto: Prefeitura de Cuiabá MT

Resolvi escrever esse relato para aproximar um pouco a todos que nos acompanham nas redes sociais do que aconteceu naquele dia 24 de agosto. Para não se esquecerem da nossa luta por um meio ambiente mais sustentável e das vitórias que devem ser comemoradas.

Escrevo também pois ontem vi uma propaganda na televisão, em horário nobre, sobre os “benefícios” das represas no rio Cuiabá. Preocupante. Preocupante ver que as grandes empresas interessadas nas represas não vão desistir de fazê-las. Preocupante, pois a estratégia utilizada é enganar a população com informações levianas e sem base científica. Preocupante pois nossa luta não pode ser esquecida.

Essa vitória foi conjunta, envolveu associações, colônias de pescadores, organizações não governamentais, políticos de esquerda e direita. Todos se uniram em prol de um bem comum, o meio ambiente, direito de todos os cidadãos. Essa luta não pode ser esquecida, a lei e a vontade do povo devem prevalecer.

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