Texto originalmente publicado em: 27/02/09
Philip Fearnside é um dos nomes mais citados na comunidade científica quando o assunto é Amazônia e mudanças climáticas. O pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) está no Brasil há mais de 30 anos estudando a floresta amazônica e os impactos de grandes empreendimentos, como estradas e usinas hidrelétricas, ao bioma.
Em uma conversa de uma hora com o site Amazonia.org.br, Fearnside mostrou preocupação com a medida do governo do Pará de reduzir a Reserva Legal no entorno da BR-163, criticou a abertura de estradas na Amazônia e defendeu a tese de que usinas hidrelétricas não são fontes de energia limpa, já que os reservatórios liberam grande quantidade de metano.
Para Fearnside, a floresta amazônica presta serviços ambientais que valem mais do que o desmatamento. O pesquisador propõe que se elabore um sistema para remunerar esses serviços. “Temos que ter mecanismos para transformar esse valor ambiental em fluxo financeiro, que vai sustentar a população de forma sustentável sem destruir a floresta”.
Confira a entrevista.
Amazônia.org.br: O combate ao desmatamento está surtindo efeito?
Fearnside: Eu acho importante não ser fatalista, pensar que desmatamento vai acontecer não importando o que o governo faça. De fato, as pessoas estão lá, arriscando a vida para frear o desmatamento, temos que apoiá-las. É importante não desvalorizar o esforço que está sendo feito.
Agora, o fato é que o desmatamento continua e a abordagem do desmatamento não pode se restringir à fiscalização. Claro que tem que haver fiscalização e consequência real por se infringir a lei, senão as pessoas aproveitam e presumem impunidade. Mas, ao mesmo tempo, é preciso enfrentar as causas do desmatamento: posse e especulação da terra, a forma com que o governo subsidia o desmatamento fazendo estradas e promovendo pastagens, soja e bicombustíveis. Tudo isso é o governo. Um lado está tentando frear o desmatamento, e o outro vai promovendo.
O governo tem 38 ministérios, o de Meio Ambiente é um só, e vários outros são mais poderosos. É muito importante que esse outro lado que estimula o desmatamento seja limitado.
Amazônia.org.br: O que se pode fazer para limitar os setores do governo que incentivam o desmatamento?
Fearnside: É preciso que haja decisão em nível acima dos ministros. Mas, o perigo também pode vir de outro lado, sendo que uma pessoa do topo pode decidir o oposto. É uma questão delicada, e é preciso colocar uma transversalidade na discussão.
Amazônia.org.br: No começo deste ano, o governo do Pará propôs uma medida que reduz a reserva legal no entorno da BR-163. Você tem acompanhado o caso? Qual a sua opinião sobre o assunto?
Fearnside: Eu acho perigoso, porque a medida dá um sinal de que é só esperar e que o desmatamento é proibido hoje, mas pode-se desmatar, já que daqui a alguns anos a lei irá mudar e permitir a devastação. É uma presunção de impunidade. Esse pessoal infringe a lei desmatando e acaba sendo legitimado por mudanças das regras. É perigoso. A BR-163 é só uma faixa na Amazônia, mas quem está em outros lugares verá isso e seguirá como um exemplo.
Amazônia.org.br: Quais são os problemas com a abertura de estradas na Amazônia?
Fearnside: A rodovia é o principal fator que gera desmatamento. Os dados são muito claros, mostram que quanto mais perto uma rodovia, e quanto mais asfaltada ela for, mais desmatamento há. A rodovia favorece várias forças para o desmatamento. Tem a valorização das terras, por exemplo. Uma terra passa a valer cinco vezes mais, então o pessoal desmata para proteger o investimento.
Também toda a parte de agricultura e pecuária passa a ser mais lucrativa. Diminuem-se os custos de transporte, então se ganha mais por cada hectare de pastagem e isso leva a mais desmatamento para criar rebanhos. E se estende a exploração madeireira. Madeira tem muita exploração mesmo onde não tem asfalto, mas a rodovia estende o lucro de onde é viável cortar. Hoje talvez longe da estrada só valha a pena cortar mogno, mas se a estrada é trazida para perto pode ser mogno e também jatobá e outras espécies. Aumenta a pressão. A madeira vai financiando o desmatamento. O valor da própria madeira vai pagar “gatos” e trabalhadores para desmatar.
Ou seja, ao investir em estradas você está investindo em desmatamento, mesmo que a finalidade do investimento seja diferente, como no caso da BR-163, que tinha a justificativa de transportar a soja do Mato Grosso para portos. Não é a soja diretamente que vai substituir a floresta, mas o processo é favorecido pela rodovia que foi justificada pela soja.
Amazônia.org.br: É o mesmo caso com a BR-319?
Fearnside: Essa é mais problemática. Em primeiro lugar, não se tem uma justificativa econômica real. No caso da BR-163, a soja vale muito dinheiro, é concreto, algo que existe. Tem impacto, mas também tem benefícios. No caso da BR-319, tem impacto, mas não tem benefícios. As justificativas econômicas são todas inventadas.
O raciocínio tem sido transportar os produtos das fábricas da Zona Franca de Manaus para São Paulo. Muito importante ressaltar isso: a finalidade é transportar de Manaus para São Paulo, não de Manaus para Porto Velho. Porto Velho é apenas uma parada onde os caminhoneiros vão dormir antes de continuar a jornada, não é o final. O objetivo de ter comércio com Porto Velho não justifica.
Seria muito mais barato transportar os produtos da Zona Franca por navios, por cabotagem, até Santos, por exemplo, e distribuir na rede que já existe. Os próprios dirigentes das fábricas de Manaus não estão interessados na rodovia, e isso consta inclusive no Estudo e no Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima), confissão incrível que diz não haver interesse na rodovia. Ou seja, a justificativa não existe.
Então, estão inventando outras, dizendo que a estrada é necessária para o combate à cobiça internacional e à invasão da Amazônia. Mas, a estrada é muito longe das fronteiras, não é uma prioridade militar. O setor militar lançou suas prioridades recentemente, com submarinos e etc., e não fala da construção de estradas na Amazônia.
A outra justificativa é de que seria algo bom para os moradores. Mas essa não é a prioridade para eles também. Se tivessem R$ 1 bilhão, que é quanto vai custar a estrada, iam investir em postos de saúde, escolas, etc.
E os impactos são muito grandes. Porque a estrada abrirá toda uma área até então inacessível ao desmatamento. Mais de 80% do desmatamento é concentrado no arco do desmatamento. Aquela área central não tem tanto desmatamento porque é de difícil acesso. E não há ali os problemas fundiários da Amazônia, a disputa entre posseiros e sem-terras e invasão. Se for aberta a estrada de Rondônia para o centro da Amazônia, haverá um fluxo de todos esses atores e processos.
Amazônia.org.br: A ferrovia seria uma alternativa?
Fearnside: Seria melhor do que a rodovia, desde que só a ferrovia, sem a estrada. Substituindo, a ferrovia iria frear a migração a partir da estrada para os dois lados, mas não resolveria o problema de migração de um ponto a outro. O movimento migratório de Rondônia para Manaus poderia acontecer e continuar para Roraima.
É o que aconteceu em Carajás. A ferrovia vai de São Luis a Marabá, e tem uma composição por semana que transporta passageiros, o restante é voltado ao minério de ferro. Mas, é uma composição que transporta cerca de 100 famílias, toda semana, ao longo de décadas. Isso transformou o centro do Pará. Mesmo que não haja pessoas saindo e desmatando ao longo da ferrovia, você tem um impacto muito grande na outra ponta, aonde vai chegando o pessoal, e tem um impacto bem maior do que navios.
Em termos de custo, também as fábricas de Manaus não estão interessados em ferrovias. Até porque a ferrovia não vai até São Paulo. A estrada de ferro teria um custo maior, e essa diferença seria paga pelo BNDES. Isso porque foi visto como uma maneira de evitar desmatamento. O valor do carbono que seria evitado vale mais do que essa diferença do custo de construção, então o argumento foi o de que futuramente seriam trazidos recursos por meio do mercado de carbono.
O governo do Amazonas apoiou por uns dois anos a construção da ferrovia. Mas, nesta última eleição, o governador se aliou ao ministro dos Transportes. O candidato deles perdeu as eleições, mas logo depois o governador fez um discurso defendendo a rodovia.
Bom, a ferrovia é melhor que a rodovia, mas a minha proposta é outra, é a de transporte por balsas. Seria mais barato fazer outro porto, pois o porto atual não tem capacidade para esse transporte interno, tudo é produzido para exportação. Essa possibilidade tem que ser considerada, já que não constou no EIA-Rima. Essa opção do navio é uma opção real.
Amazônia.org.br: Você também tem estudado a questão das hidrelétricas. Como você vê o Plano Decenal de Energia, que prevê a expansão de hidrelétricas, além de usinas termelétricas?
Fearnside: É importante que os impactos das usinas sejam analisados antes de se tomar a decisão de fazer as hidrelétricas, e não seja anunciada a expansão primeiro para depois serem feitos os estudos que justificarão o que já foi decidido.
Os impactos das hidrelétricas são maiores do que os já conhecidos, inclusive em termos de emissão de gases de efeito estufa. E no caso dos benefícios, elas têm efeito menor do que se tem falado, porque grande parte da energia é voltada para alimentar as indústrias eletro-intensivas, principalmente de alumínio.
Todo mundo pensa que a energia vai para as casas, para lâmpadas, quando realmente o motriz disso é o alumínio para a exportação. Não o alumínio que você vai usar, mas o que vai para o Japão, para a Europa. Um alumínio barato, porque o custo ambiental está sendo absorvido pelo Brasil. Basicamente se está exportando energia em forma de lingotes de alumínio. Essas grandes usinas, de grandes impactos, não estão beneficiando os pobres. A primeira coisa que se tem que discutir é o que se vai fazer com energia, de quanto realmente se precisa. Depois se discute uma expansão.
É preciso ver também que essas usinas quase não trazem benefícios para o Brasil. Mesmo o emprego é mínimo nessas usinas. As vagas de trabalho são criadas para o Japão, para o negócio de alumínio.
Amazônia.org.br: Você falou em impactos de emissão de gases de efeito estufa. As hidrelétricas na Amazônia emitem mais?
Fearnside: Emitem, e não só na Amazônia. Na Amazônia, elas emitem de várias formas. Primeiramente, você tem a floresta que estava lá, muitas árvores ficam esticadas para fora da água e a madeira vai apodrecendo. Isso emite gás carbônico que causa efeito estufa. Mas, o que dura é a emissão de metano. É a forma que é tomada quando apodrece a matéria no fundo do reservatório, onde não há oxigênio.
Amazônia.org.br: Isso quando a floresta não é retirada para se fazer o reservatório?
Fearnside: Mesmo retirando a floresta. O metano tem um impacto muito maior sobre o efeito estufa por cada tonelada. É vinte e cinco vezes maior por cada tonelada de gás se comparado com o gás carbônico. Qualquer transformação do carbono em metano gera mais impacto, e a culpa dessa emissão é da hidrelétrica. O reservatório funciona como uma fábrica de metano.
A água dentro do lago acaba formando camadas, uma mais fria no fundo e outra mais morna em cima. É formada uma divisória que não permite a mistura dessas duas camadas. A água do fundo fica sem oxigênio, e tudo o que apodrece lá vira metano, não gás carbônico. Grande parte desse metano sai pelas turbinas das usinas. Essa água está sob pressão, o que faz mais gás ser absorvido pela água. Quando a água passa pela turbina e sai pelo ar livre com menos pressão, o gás vai saindo e é muito metano. Meus cálculos mostram que as usinas da Amazônia, Balbinas, Tucuruí, Curuauna e Samuel emitem mais gases de efeito estufa do que seria emitido para a geração de energia com combustíveis fósseis. Isso tem que ser considerado nos cálculos de efeito estufa e na decisão de se construir ou não usinas.
Amazônia.org.br: E quais seriam as alternativas viáveis de geração de energia limpa?
Fearnside: São várias. A primeira coisa que se pode fazer é simplesmente utilizar menos energia. Essa é de longe a alternativa mais eficaz. Há muitas coisas gritantes que não estão sendo feitas.
Para dar um exemplo, no Brasil, utiliza-se muito o chuveiro elétrico para tomar banho. Essa energia vem de termelétricas a gás. Queima-se gás para esquentar água em turbina e gerar energia, a energia é transmitida até a sua casa e você usa para esquentar a água do chuveiro. Em cada uma dessas transformações, você está perdendo parte de energia. Se for usar gás diretamente para esquentar a água, você pula essas etapas. Poderia ser usada a energia solar também, sem se utilizar nenhum tipo de gás como fonte. São várias opções, coisas que valem por essas grandes hidrelétricas que estão sendo discutidas na Amazônia hoje.
São várias opções, mas uma das principais é a decisão sobre o que o Brasil deve exportar. Se o Brasil exportará alumínio para o mundo, não tem limite de quantas hidrelétricas precisa, porque o mundo quer comprar montanhas de alumínio. É uma decisão que o país deve fazer sobre se irá vender aquilo ou não. É importante entender isso. As pessoas pensam que economia é uma coisa acima dos países, como se tivesse direito de comprar o que quiser, mas não é assim. Se algo tem grande impacto ambiental, o país pode decidir que não quer vender aquilo.
É o caso do mogno, por exemplo. O mogno tem grande valor no mercado mundial, mas o Brasil decidiu que não vai vender mogno e tem moratória, hoje sua comercialização é proibida. Se você quer comprar mogno, pode comprar da Bolívia ou de outro lugar. Mas, ao menos legalmente, não pode comprar do Brasil. Foi uma decisão do país. Podemos ter o mesmo tipo de decisão com outras coisas, como com relação à energia e ao alumínio.
Amazônia.org.br: Você acha que é possível conciliar o desenvolvimento econômico com a preservação da Amazônia?
Fearnside: Sim, inclusive faz parte da estratégia que eu venho propondo há mais de vinte anos, de usar os serviços ambientais da floresta amazônica como base da economia. Hoje a economia da Amazônia é construída em cima de destruição. Tudo envolve a destruição da floresta.
A floresta faz serviços que valem mais do que desmatar a área: evita o efeito estufa, mantém a biodiversidade e garante a reciclagem da água que, inclusive, trará água da chuva para São Paulo. Essas coisas valem mais do que o boi em um hectare na Amazônia. Temos que ter mecanismos para transformar esse valor ambiental em fluxo financeiro para sustentar a população de forma sustentável sem destruir a floresta.