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O Brasil precisa de um ‘Eximbank’, defende Mercadante

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Foto: Agência Brasil

Por Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico

O presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, toma posse no cargo nesta segunda-feira, 6, disposto a reverter a imagem de escoadouro de subsídios públicos para grandes empresas deixada pelo banco sob gestões petistas.

Garante que a mudança a ser proposta para a TLP não se valerá de recursos do Tesouro.

Diz que o projeto a ser enviado ao Congresso para alterar a composição da taxa proporá duas mudanças: levará em conta a média de inflação e não o valor mensal e terá uma redução na taxa que remunera os recursos do Tesouro e referência a TLP.

Mercadante faz eco às propostas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de retomar o financiamento de empresas brasileiras no exterior, com a criação de um “Eximbank”. Compromete-se, porém, a não reverter as políticas de transparência adotadas em reação à caixa-preta dos financiamentos à exportação nos governos do PT.

Já aclimatado ao Rio, diz ter adotado a sugestão de Chico Buarque de usar chapéu e óculos escuros para passar incólume em suas caminhadas no calçadão entre Ipanema e Copacabana, onde mora. A seguir, a entrevista concedida ao Valor na tarde da sexta-feira:

Valor: Sua nomeação trouxe temores de que o BNDES retomaria a política dos “campeões nacionais”. O senhor nega, mas o que vai mudar, efetivamente, nas políticas operacionais do banco

Mercadante: Nossa diretoria não veio para retomar o BNDES do passado, mas para construir o do futuro. Um banco que será verde, digital, industrializante e inclusivo. O BNDES teve historicamente uma participação no PIB de 1,5% a 2%. Na crise de 2008, o BNDES chegou a quase 4% e gerou esse tensionamento com o mercado de capitais. Hoje ela é de 0,7%, mas tem espaço para crescer e retomar esse patamar de até 2% do PIB. Este BNDES não pode se alavancar com subsídios fiscais. Não tem espaço no orçamento. Por outro lado, o BNDES devolveu ao Tesouro de 2015 para cá R$ 678 bilhões. Tinha recebido 54% desse valor. Uma série de instrumentos foram desenvolvidos para este processo de transferência de recursos. Este não é o espaço de um banco de desenvolvimento, mas o de impulsionar o investimento público e privado. Até 2024 devolveremos os R$ 24 bilhões que restam. E é este equilíbrio com o Tesouro que buscamos.

Valor: O senhor foi escolhido antes do ministro a cuja pasta o BNDES está subordinado. E o ministro, por sua vez, é o vice-presidente, segundo na linha sucessória da República. Como se dará a governança dessa interação entre Lula, Alckmin e o senhor? O presidente disse que o Brasil O presidente disse que o Brasil financiará empresas brasileiras na Argentina. Isso foi discutido com o senhor?

Mercadante: É muito importante ter o ministro Geraldo Alckmin no Ministério da Indústria, Comércio e Desenvolvimento, por ser vice-presidente e por ser um gestor qualificado e experiente com quem eu tenho a melhor relação. É um ministério supervisor e alinhado. Estamos definindo tudo conjuntamente. Ele está concluindo a montagem da equipe dele. Já definiu [o ex-governador do Acre] Jorge Viana na Apex, Uallace Moreira, que foi da Fundação Perseu Abramo, como secretário de desenvolvimento industrial e inovação, e [o ex-procurador-geral de Justiça] Marcio Elias Rosa para a secretaria-executiva. Tem um alinhamento muito próximo. E também com a Fazenda, com o ministro Fernando Haddad, [o secretário de política econômica] Guilherme Mello, e [o secretário-executivo] Gabriel Galípolo. E é evidente que é o presidente quem define as diretrizes. Ele foi eleito, tem mandato e autoridade para desenhar a estratégia.

Valor: Então será prioridade a política de financiamento para empresas brasileiras no exterior?

Mercadante: O BNDES tem que constituir um Eximbank para o comércio exterior. Todos os países desenvolvidos, EUA, China, Alemanha, os países da OCDE já têm um Eximbank, um banco focado no fomento às exportações. Nós queremos fortalecer as exportações porque 98% do mercado está fora do Brasil. A competitividade depende de escala. As cadeias globais de valor estão se regionalizando. Há uma mudança no cenário geopolítico internacional e um caminho de oportunidades no Brasil. Só oito países no mundo produzem aviões. Não existiria Embraer sem BNDES. Nenhum banco queria financiar o ERJ 145, que foi o salto tecnológico da aviação regional da Embraer, quando foi apresentado. O BNDES financiou e foi um êxito. Ganhou 0,5% de royalties para cada avião que fosse vendido. E 1.270 aviões foram exportados. Tem que financiar inovação, patentes. É importante que o Brasil seja um grande produtor de alimentos, mas o emprego de qualidade é a que gera. Temos que reindustrializar o país.

Valor: E como funcionaria esse Eximbank? O financiamento no exterior na época dos “campeões nacionais” foi marcado pela ausência de transparência. O senhor se compromete a não reverter a transparência alcançada?

Mercadante: O BNDES hoje é um dos bancos mais transparentes do planeta. Todas as operações são públicas. Raríssimo encontrar um banco tão transparente.

Valor: A falta de transparência anterior foi um erro?

Mercadante: Foi errada, mas não tenho condição de analisar porque não estava aqui, mas sei o que é hoje. O TCU tem elogiado a transparência do banco.

Valor: Elogia porque o banco mudou as práticas que vigiam nos governos anteriores do PT…

Mercadante: O sigilo bancário é um princípio rigoroso, mas, como se trata de um banco público, a transparência é importante. Na infraestrutura, por exemplo, há um déficit de financiamento de R$ 266 bilhões estima estimado hoje na economia brasileira. Houve um aumento expressivo de projetos de infraestrutura. No BNDES os projetos de infraestrutura avançaram muito. O “pipeline” está muito forte e tem muitos projetos em andamento, mas houve uma queda, de mais ou menos R$ 50 bilhões no financiamento de 2014 para cá. De outro lado, houve crescimento do financiamento privado. Tudo que o mercado puder fazer é ótimo que faça. O BNDES não tem que concorrer nem disputar espaço com o mercado, tem que complementar. E induzir para ir além. O BNDES pode mitigar riscos, alongar prazos de financiamento e estimular a criação de novos mercados. E na infraestrutura tem um papel fundamental no desenho de projetos. Nossa carteira é de R$ 40 bilhões.

Valor: O senhor já tem uma meta de aumento desta carteira?

Mercadante: Não, ainda não podemos estimar, estamos analisando projetos e dependemos de nossa capacidade de “funding”. Mas desses R$ 40 bilhões, apenas 10% são financiados por títulos ao mercado, debêntures. O espaço para a gente financiar projetos de infraestrutura com instrumentos de mercado é muito grande. Isso alivia a pressão sobre os recursos do BNDES, do FAT e de outros fundos que podem ser destinados a outros projetos, como o de pequenas e médias empresas. Então temos mecanismos de mercado que ajudam a alavancar. Tem espaço para lançar mais títulos, comercializá-los no mercado e acelerar a renovação dos seus ativos, de sua carteira. Isso aumenta a alavancagem do banco. O setor privado tem um grande desafio na área de infraestrutura e nós, também. Governadores estão pedindo recursos, há estradas a serem feitas, portos a serem modernizados. A logística do país precisa ser aprimorada.

Valor: O senhor já disse que a mudança da TLP vai se concentrar em três setores: pequenas e médias, sustentabilidade e inovação. Qual será a proposta a ser enviada ao Congresso sobre a TLP? Que custo terá para o Tesouro?

Mercadante: Estive na Febraban discutindo isso. TLP é projeto de lei, não será definido pela diretoria, mas votado pelo Congresso.

Valor: Mas o que será proposto?

Mercadante: Não há chance de se voltar para a TJLP que foi criada no Plano Real e já não tem como ser abrigada no atual cenário. É preciso deixar claro que não faremos qualquer proposta por subsídio do Tesouro. Não tem espaço fiscal. O problema da TLP hoje é a volatilidade porque se vale da inflação do mês, um erro técnico, elementar. Em maio do ano passado a projeção da taxa anual de inflação era de 27% porque a inflação deu um salto com o preço do combustível. Então isso desorganiza o pequeno investidor. A prestação deixa de caber no bolso dele.

Valor: O senhor pretende então usar uma média?

Mercadante: Sim, é preciso trabalhar com uma média para dar mais estabilidade a essa volatilidade e, com isso, a oscilação do mês muda mais lentamente. É uma mudança que todos os técnicos aqui com quem temos conversado estão de acordo. É algo muito razoável. A TLP também tinha um fator de redução. Começou com 54% da NTN-B de cinco anos e ia escalonando até que agora chegou a 100%. Durante esse período já houve uma taxa menor do que a deste momento. E foi justamente nesse momento que o banco transferiu recursos significativos ao Tesouro. Podemos rediscutir este fator, por exemplo, para micro, pequenas e médias empresas.

Valor: Um desconto, na prática?

Mercadante: Sim, porque a TLP tem estado muito acima da Selic e do custo médio de rolagem da dívida pública. Não faz sentido. Prejudica o pequeno e médio na ponta porque o BNDES, nessa linha de pequenas e médias, chegou a financiar R$ 52 bilhões, por canais diretos e por meio de 77 agentes privados. Tem espaço para reduzir. Estamos falando de recursos do FAT e não de subsídios.

Valor: Haveria uma redução escalonada como o foi o aumento?

Mercadante: Tecnicamente é fácil encontrar alternativas. Todo banco tem taxas flexíveis de juros. As micro e pequenas empresas representam 29% do PIB no Brasil. Na Itália e na Alemanha ficam entre 65% a 70% do PIB. Tem espaço para crescer. Isso gera emprego e desconcentra renda. É o papel do banco buscar linhas mais competitivas e quem vai operacionalizar é o setor financeiro privado. O objetivo é chegar na ponta com taxa mais baixa sem subsídio do Tesouro. Na crise da pandemia o Tesouro ainda transferiu R$ 20 bilhões para o BNDES operar via fundo garantidor, que permitiu uma alavancagem de R$ 94 bilhões de crédito.

E tem ainda o FGI-PEAC [Programa Emergencial de Acesso a Crédito], que foi muito importante na crise e é um fundo muito exitoso. Vamos fazer esse debate da TLP com a Febraban e com o Congresso.

Valor: O senhor tem enfatizado as propostas convergentes com a Febraban e a Fiesp que podem redundar na redução da TLP, mas o sistema bancário tem conseguido inúmeras mudanças regulatórias que melhoraram a recuperação de ativos nos últimos anos sem que isso tenha redundado na redução do spread. O que nos leva a acreditar que desta vez essas mudanças não se limitariam a mudar a gestão da inadimplência bancária?

Mercadante: Acho que eles também têm interesse em ter uma TLP menor. Tem concorrência entre os bancos. Trabalhamos com 77 instituições financeiras. Temos um nível de inadimplência muito pequeno no banco, que é muito prudente nos seus financiamentos. A exposição ao risco é maior dos parceiros que estão na ponta operando. Mas é um tema que precisa ser discutido no Brasil. A taxa de juros básica é a maior do mundo nesse momento e não vejo razão para continuar assim. Tem todas as condições macroeconômicas para reduzir. Tem 50 milhões de CPFs negativados no Brasil. Precisamos enfrentar isso para a economia voltar a rodar. Mas este é um tema que compete à Fazenda, ao sistema financeiro e ao Banco Central.

Valor: O senhor pretende ampliar leilões que intensifiquem a disputa entre os bancos pela oferta de uma intermediação mais barata?

Mercadante: Sempre é positivo tudo que puder reduzir as taxas e melhorar as condições de financiamento. Já apresentamos o pedido para fazer parte da Febraban. A federação é um espaço importante de discussão de políticas públicas. O BNDES tem 70 anos, a Febraban, 55, porque só a Caixa e o Banco do Brasil participam? Queremos debater e discutir diretamente temas comuns com o sistema financeiro privado.

Valor: Que critérios exatamente serão usados para enquadrar os tomadores nessas prioridades que o banco terá para pequenos e médios, sustentabilidade e inovação? A JBS, por exemplo, se apresentar projetos de inovação e sustentabilidade, terá acesso aos recursos? As termelétricas se encaixam nesse perfil?

Mercadante: A partir de 15 de fevereiro vamos ter a primeira reunião do Fundo Amazônia. São R$ 3,8 bilhões a serem operacionalizados pelo BNDES. O Conselho vai definir as diretrizes a partir de três grandes rumos. O primeiro é retomar as operações de comando e controle, porque os instrumentos estão muito deteriorados. Gigantesco desafio. Imagine tirar 20 mil garimpeiros ilegais da terra Yanomami. Imagine como isso representa uma operação complexa. Depois a emergência social. Os Yanomami são a ponta mais visível dessa tragédia, mas há muitas comunidades com dificuldades. E, principalmente, dar emprego e renda, a começar pelas áreas indígenas de unidades de conservação. Se vamos substituir uma prática ilegal e criminosa, temos que colocar no lugar alternativas para manter a floresta em pé. Uma delas é a reconversão de pastagens degradadas de 30 milhões de hectares em que se pode fazer reflorestamento, agricultura de baixo carbono. Isso ajuda a diminuir a pressão por desmatamento. A pesquisa na Amazônia deve gerar valor agregado pela diversidade. A infraestrutura tem que ser desenhada para populações em áreas urbanas, desmatadas e em florestas.

Valor: Qual é a diretriz para evitar que empresas grandes se locupletem dos recursos verdes?

Mercadante: A tudo o que o mercado de capitais privado puder responder o BNDES não precisa entrar. O que precisamos buscar é o hiato entre o mercado privado e as necessidades do país. Podemos ajudar a formatar os projetos, alongar prazos e mitigar riscos. E ainda tem recurso novo, como o do Fust [Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações], que tem R$ 1,1 bilhão este ano. Propusemos um projeto de lei há 13 anos que vincula uma parcela do Fust para a universalizar o serviço de telecomunicação das escolas públicas. Foi aprovado na pandemia. Ficou claro o apartheid digital. Agora podemos expandir a banda larga nas escolas.

Valor: A pressão das térmicas por financiamento vai encontrar abrigo no BNDES?

Mercadante: Nossa prioridade é a transição energética. O BNDES é uma experiência exitosa no financiamento da energia eólica. Financia os equipamentos geradores do parque eólico que representam 10% da energia brasileira. Vão crescer muito os parques eólicos sobre lâminas d’água, represas e oceano. O Brasil está com 92% de energia limpa, um dos melhores índices do mundo, e podemos rapidamente chegar a 100%. A demanda do mercado por energia solar é de R$ 8,6 bilhões em investimentos. Na biomassa temos vários projetos de hidrogênio verde, uma experiência na Bahia, que vai começar a produzir em escala industrial. O primeiro-ministro alemão, Olaf Sholz, revelou grande interesse no tema em sua passagem pelo Brasil. Só na União Europeia tem um fundo de R$ 55 bilhões que vamos buscar. A China, os EUA, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento também têm. Vamos aumentar os financiamentos não com recursos do Tesouro, mas com organismos multilaterais para enfrentar a crise climática. O BNDES será líder numa economia descarbonizada, e isso vai abrir novas fontes de financiamento. Nossa equipe tem Carlos Nobre, ambientalista renomado, Izabella Teixeira, que foi ministra do Meio Ambiente, e Luciana Costa, que foi presidente, no Brasil, do Natixis, banco francês de investimentos que é o mais verde do planeta, com U$ 2 trilhões em sustentabilidade.

Valor: Esta questão das térmicas precisa ser esclarecida, porque foi uma pressão abrigada pelo Congresso e que se mantém. O Brasil contratou um estoque de energia que não está sendo usado…

Mercadante: Tem um problema grave no marco regulatório do setor energético. Coloca-se na conta do consumidor um custo desnecessário. A obrigatoriedade de termelétricas rodando longe dos centros consumidores e com problemas em linhas de transmissão precisa ser revista. Nossa demanda é de eólicas e solares. Não conheço nenhuma demanda importante das térmicas no banco.

Valor: O senhor pretende aumentar a captação no exterior?

Mercadante: Estamos estudando como mitigar o risco cambial, senão dificulta repassar esta linha à frente. Quem oferta a linha, por exemplo, pode dividir o risco cambial com quem toma.

Valor: O que muda no financiamento da infraestrutura?

Mercadante: Todas as linhas de crédito vão enfatizar sustentabilidade, empoderamento feminino e de negros e negras. Vamos ter Alexandre Abreu, que foi presidente do BB, na tesouraria para aumentar a alavancagem dentro das regras da Basileia. Temos espaço para isso. E tem ainda o projeto de letras de crédito e desenvolvimento que está no Senado e nos esforçaremos para aprovar porque pode ajudar a captar recursos. Além disso, as linhas internacionais estão chegando. Desde 2014 que não vinha uma liderança alemã importante. Agora vieram o presidente, o primeiro-ministro, o ministro da Fazenda e o chanceler. O interruptor do planeta passa por aqui.

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