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Pesquisadora explica a comercialização de alimentos tradicionais da Amazônia e Cerrado

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Projeto Alimento 

Maíra Bueno

 

O mercado de alimentos movimenta diversos produtos no mundo inteiro. A comercialização de produtos nativos no Brasil, em especial, tem chamado atenção para os desafios socioambientais que as regiões produtoras enfrentam. O que as cadeias de produção da Amazônia e Cerrado indicam? Entrevistamos a professora da Universidade de Brasília, Janaína Diniz, para responder a estas perguntas. Janaína Diniz é engenheira de alimentos e doutora em Logística e Estratégia Sustentável. Especialista em circuitos de comercialização, hoje ela coordena o mestrado em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural do Campus Planaltina – UnB.

 

PA – Você fez uma ampla pesquisa sobre a cadeia da castanha na Amazônia. Fala um pouco sobre isso!

JD – Até início dos anos 2000, cerca de 85% da castanha do Pará produzida no Brasil era exportada. Em 2003, porém, a União Europeia devolveu vários lotes de castanha com índices acima do aceitável de aflatoxina, uma toxina cancerígena causada por fungo. Com o rechaço da castanha, como ficou conhecido, a UE deixou de comprar castanha do Brasil e passou a comprar da Bolívia. Hoje, a Bolívia é o maior exportador para UE desse produto. E os empresários que comercializavam castanha no Brasil tiveram que se voltar para outros mercados, incluindo o mercado nacional. Então foi só de 15 anos pra cá que o comércio da castanha voltou-se para o mercado interno.

 
PA – Isso mudou a maneira como a castanha é identificada internacionalmente?

JD – Sim. Antes, quando nossa produção dominava o mercado europeu, usava-se mais o nome de Castanha do Pará e Castanha do Brasil. Depois que os bolivianos começaram a exportar começaram a identificar como Castanha da Amazônia. Afinal, tem castanha em toda Amazônia, não só na Amazônia brasileira, tem na Bolívia, Peru, nas Guianas… então Castanha do Pará, castanha do Brasil e castanha da Amazônia são nomes populares para a mesma espécie (Bertholetia excelsa).

 
PA – A cadeia da castanha beneficia as populações agroextrativistas?

JD – O Brasil hoje exporta bem menos castanha – apesar de ter castanha brasileira sendo registrada como exportada pela Bolívia. É uma cadeia pouco organizada. Mas para quem trabalha com a coleta, o beneficiamento, a contribuição para a renda dessas famílias é importante. O volume, em termos de dólares exportados, é pequeno, mas para essas regiões, é significativa a renda que eles recebem nesse período.

 
PA – Estimular esse tipo de cadeia é eficaz para o desenvolvimento sustentável da Amazônia?

JD – É difícil te dar essa resposta! Desenvolvimento sustentável em qual escala de tempo? Por que desde o início dos anos 1990 viemos pensando em garantir a sustentabilidade para as gerações futuras, mas só agora estamos vendo as gerações futuras herdando essas novas estruturas. Eu tenho estudantes pesquisando um caso de cooperativa do açaí, no Pará, por exemplo. São várias cooperativas consolidadas e sempre chega um momento em que elas tem problemas. É importante aquela ideia da conservação da floresta em pé, mas o formato como essas ideias foram implementadas, até por conta dos projetos com financiamento internacional, no auge do pós Rio-92, o modelo de cooperativa não veio da base, era um modelo que antes não era praticado pelas comunidades da região Norte.

 
PA – Qual era o modelo praticado?

JD – A cadeia da castanha, por exemplo, antes tinha uma organização própria. O problema de contaminação das castanhas com aflatoxina, que fez com que o Brasil perdesse o mercado europeu, foi gerado em parte pelas novas condições de armazenamento e transporte. Antes existia uma estrutura formada pelo patrão, que organizava o comércio, os funcionários e de repente, nas reservas extrativistas, nas reservas de desenvolvimento sustentável, esses antigos funcionários tiveram que se organizar no formato deles. É claro que eles herdaram conhecimento, mas as organizações tinham que olhar para outras coisas e inclusive se colocar no papel dos patrões e isso gerou uma queda na produção…

 
PA – Porque essa organização auto-gestionada não dá certo?

JD – Eu não sei… essa nova estrutura não dá certo só na Amazônia. Próximo a Brasília, com coletores de baru em Pirenópolis, por exemplo. Lá tem uma boa demanda, turismo forte, mas não tem uma cooperativa ou associação que funcione por muito tempo. O que está prevalecendo são os empreendimentos familiares. Então essas estruturas podem até ser importantes, elementos chaves para o desenvolvimento sustentável. Essa era a lógica anos atrás. A dificuldade hoje é saber qual a melhor forma de se organizar. Porque existem várias experiências mal sucedidas, de estruturas que nascem da base ou não.

 
PA – Você comentou sobre os coletores de baru… quais são as cadeias de alimentos do Cerrado?

JD – No Cerrado você não tem, por exemplo, um produto que se destaque, como a borracha, a castanha, o açaí, para esse mercado internacional, ou mesmo nacional. Tem um consumo muito forte de pequi, por exemplo, principalmente na região de Goiás e de Minas. Então está começando alguma coisa hoje com o baru, que é uma castanha bem específica da região do Cerrado, mas é curioso porque ela não era consumida pela população local mas vem ganhando interesse pelo pessoal de fora. Com a castanha do Pará foi um pouco assim antigamente.

 
PA – Então primeiro se forma uma demanda para depois organizar a produção…

JD – Sim. Na época em que 85% da produção de castanha nacional era exportada para a União Europeia, havia um financiamento internacional da produção. Os importadores eram principalmente os europeus. Isso por volta de 1950… a lógica do aviamento funcionava em algumas regiões, de adiantar recurso para coleta e transporte das castanhas e para manutenção das famílias, e tinha também o sistema de financiamento, o comprador financiando a produção. Esse sistema mudou um pouco com os projetos de desenvolvimento, mas a lógica continua igual, que é característica de qualquer sistema de produção, até de produção agrícola. Mesmo de commodities, que são os produtos agrícolas produzidos em larga escala e comercializados em nível mundial. A gente diz que é um sistema de produção “empurrada”. É assim: vamos primeiro produzir para depois ver como vender. Mas algumas cadeias funcionam já com o compromisso de atender a uma demanda. Tem as duas coisas..

 

 

PA – Não é um pouco arriscado isso? Estimular a cadeia agroextrativista antes de ter demanda?

JD – Já é muito difícil atender a demanda com produção agrícola. Com esses produtos é ainda mais complicado, porque tem a questão dos ciclos biológicos também. Em um ano a safra é boa, em outro não. Em geral, os produtores vão fazer a coleta porque sabem que a venda do produto já está comprometida, mas às vezes eles nem conseguem atender aquilo que está comprometido, por que de uma safra para outra existe grandes variações. No caso do baru, no Cerrado, isso é muito forte. Com a castanha da Amazônia chega a acontecer isso dependendo das condições climáticas. A coleta também é complicada, por causa do transporte. Então não existe uma previsibilidade. O que acontecia na época dos patrões da Amazônia é que eles mandavam “equipes de avanço” para traçar uma estimativa do que poderia ser a produção. Eles observavam quanto a safra poderia render e iam ajustando a previsão com quem demandava.

 
PA – E agora, acontece mais o sistema de empurrada?

JD – Depende. Vou te dar um exemplo: tem um caso de um professor da UnB que está há 20 anos desenvolvendo pesquisa com o pequi pra fazer uma cápsula que é rica em antioxidantes, etc.. Divulgaram essa notícia e uma empresa farmacêutica já está tentando organizar uma cadeia em Mambaí, que é uma região de Goiás próxima à Bahia, com vários extrativistas de pequi. Essa empresa está orientando os coletores sobre como devem fornecer o pequi, porque eles geralmente tiram a polpa e vendem em garrafas pet, às vezes perdem metade do que eles produziram por causa das condições de conservação. E a empresa já disse que não quer pequi em garrafa pet, quer receber o fruto, para poder ter o controle da qualidade. Ou seja, eles já estão lá, organizando a cadeia em função de uma demanda que ainda nem sabem se vai ter, que ainda está começando, está sendo prospectada…

 
PA – As cadeias produtivas de alimentos da Amazônia e do Cerrado são semelhantes?

JD – A Amazônia tem mais diversificação de mercado. Até por características sazonais. As safras na Amazônia são complementares. A castanha com a borracha, por exemplo. Antes, quando terminava a safra da borracha, começava a da castanha. E as populações que faziam a coleta tanto da borracha quanto da castanha, elas também pescavam e tinham um pouco de agricultura. No Cerrado, as populações tradicionalmente são mais agricultores do que extrativistas. São principalmente as políticas recentes para cadeias da sociobiodiversidade que fazem com que essas populações se interessem em trabalhar com extrativismo. Mas ainda assim, com alguns poucos produtos.

 
PA – Não existe então uma cadeia de alimentos nativos do Cerrado?

JD – É que as populações são pluriativas no Cerrado, muito mais do que na Amazônia, porque a sazonalidade dos produtos do Cerrado é muito curta. Os produtos que poderiam ser interessantes para o mercado, por exemplo, pequi, araticum, buriti, cagaita, mangaba, eles têm um período de ocorrência muito curto. Então os agricultores se dedicam, mas não tem uma grande demanda, não tem um mercado importante. Eles se preparam para um auto consumo, às vezes para uma feira. As organizações que trabalham com isso, as cooperativas existem há pouco tempo, mas já começam pensando na diversificação. Não tem uma cadeia produtiva no Cerrado, é todo um sistema. Na Amazônia, existem mais cadeias de um único produto, até pelas características de alguns produtos e pela demanda que acabam gerando…

 

PA – E por que na Amazônia existem mais cadeias de um único produto?

JD- Na Amazônia tem uma tradição de cadeias que despertam o interesse internacional. Talvez porque a Amazônia lá fora tem esse apelo de ser o pulmão do mundo. No caso do Cerrado, não tem um apelo ambiental e isso interfere na formação dos mercados… É interessante, porque quando a Presidenta Dilma falou no discurso da primeira posse, que as ações do governo tinham que se voltar para a preservação da Amazônia e para a exploração do agronegócio no Centro-Oeste, ela não se referiu ao potencial das cadeias da sociobiodiversidade do Cerrado. Então o direcionamento e a atenção por via das políticas públicas para os dois biomas, Amazônia e Cerrado é bem diferente. No caso do Cerrado, são poucos os produtos que estão inseridos em políticas públicas. E também é impressionante a diferença de escala. Na Amazônia a escala é enorme, de produção, de ocorrência dessas espécies, e no Cerrado, a tradição ainda é muito para o auto consumo.

 

 

PA – O que são cadeias de produtos da sociobiodiversidade?

JD – As cadeias de produtos da sociobiodiversidade valorizam o comércio regional, local, nacional. Então sai um pouco desse foco da exportação. Antes o extrativismo de produtos nativos era muito focado no mercado internacional, por serem matérias-primas de interesse das indústrias de fora e, mais recentemente, por conta do comércio justo, da certificação florestal. E também por causa da Amazônia. Os produtos da Amazônia despertam interesse do mercado. Quando chega a informação de que o açaí é rico em antocianina, que a castanha é rica em selênio, tem todo esse interesse pelas propriedades desses produtos lá fora… no Brasil também tem, mas em termos de volume é diferente.

 
PA- E a cadeia do açaí, como começou?

JD – A cadeia do açaí sempre teve um consumo importante em toda região Norte. Só recentemente começou a despertar interesse da população de outros estados brasileiros. As pesquisas mostram que ainda não há um mercado estrangeiro consolidado. Os Estados Unidos importam alguma coisa, mas o açaí ainda não é um produto tão reconhecido lá fora. Mais de 70% do que se coleta e se comercializa de açaí no Pará, por exemplo, é consumido localmente.

 
PA – Quando o açaí começa a ser consumido fora da Amazônia?

JD – Faz 20 anos mais ou menos. Um professor da Universidade Federal do Pará fez um trabalho sobre o açaí que foi um marco, porque melhorou as condições sanitárias de transporte e acondicionamento. Isso possibilitou exportar o açaí para outras regiões, sem comprometer tanto a qualidade. Ele mostrou que o açaí consumido nos bairros periféricos de Belém, que eram mais próximos dos portos que recebiam açaí do interior, tinha menor contaminação do que o consumido nos bairros mais nobres, que eram centrais. Essa contaminação ocorria por causa do tempo de transporte, porque ninguém congelava açaí nessa época. O açaí ia in natura, para ser batido, que é assim que as pessoas tomam açaí no Pará.

 
PA – Então para estimular a cadeia houve uma modificação na maneira como se consome açaí tradicionalmente…

JD – Sim. Historicamente, o açaí no Pará era um produto que tinha um consumo apenas local. Sempre teve uma tradição diária de consumo. Principalmente entre as famílias de baixa renda. O açaí era amassado manualmente nas áreas rurais, e com a chegada da energia, uma das primeiras aquisições locais tornou-se o batedor de açaí. Então é um alimento importante localmente. E quando começa a ser consumido em outras regiões, no sul e sudeste, o consumo muda, inclusive no Pará…

 
PA – Quais são as principais mudanças que ocorrem com a expansão do açaí?

JD – Muda a forma de escoar, de conservar. O que antes era consumido batido na hora, para chegar em Brasília, Rio, São Paulo, vai ter que ser congelado. Então muda toda a estrutura da cadeia produtiva. No Amazonas, onde as distâncias são muito grandes, já se tentava conservar o açaí com gelo, mesmo não sendo congelado. O próprio fruto, ainda caroço, era conservada no gelo, sem ser batido. São realidade diferentes, mesmo dentro da Amazônia. Mas boa parte do açaí que é vendido para o resto do país vem do Pará. E o congelamento da polpa do açaí no Pará é algo recente.

 
PA – Tem açaí para a população local ou a produção voltou-se toda para atender a essa nova demanda que vem do sudeste?

JD – Todo mundo fica dizendo que vai acabar com o açaí dos ribeirinhos, mas o que a gente tem acompanhado é que não está acabando. Continua tendo açaí nas comunidades, pois elas dão prioridade para o consumo de suas famílias, mas na cidade o açaí aumentou muito de preço. O consumo do açaí nas cidades está passando por uma elitização. Era uma coisa que todo mundo consumia com peixe frito, com camarão ali no mercado do Ver-o-peso. Hoje esse consumo está mais elitizado…

 
PA – Qual o impacto da produção do açaí no Pará?

JD – Tem regiões no Pará já com monocultivo, que são áreas desmatadas para plantar só açaí. Mas também tem áreas onde o açaí é produzido em sistemas agroflorestais. Então para a população local ainda não é um risco. Para a população pobre e urbana eu não sei como está o consumo de açaí, se eles estão o substituindo por outro alimento. Para essas populações, o açaí é um alimento diário e se está ficando mais caro, como elas estão se alimentando? Eu ainda não sei essas respostas, precisamos fazer essa pesquisa, mas é uma dúvida que fica, porque o consumo na cidade está mudando. O que a gente não pode negar é que tem tido um interesse grande em se desenvolver essa cadeia e tem gerado muitas mudanças, para o bem ou para mal, muda de alguma forma a estrutura das comunidades que estão trabalhando com isso. O saldo é positivo em termos de geração de renda… Tem essas novidades do açaí, tem tanto essas que são voltadas para as indústrias exportadoras e tem também esses programas de compras institucionais para alimentação escolar que funcionam em regiões produtoras de açaí e castanha, por exemplo.

 
PA – As populações que estão inseridas nas cadeias de produção e comercialização tem autonomia?

JD – Às vezes, mesmo em uma iniciativa que tenha começado da base, se dentro do contexto ela se integra dentro de um circuito, é difícil manter a autonomia. É a própria questão do sistema de integração, muito praticado na produção de aves e suínos. A indústria fornece insumos para o produtor e ele vende toda a sua produção para essa indústria. Com isso, o produtor acaba ficando sem autonomia. A produção de leite funciona assim. É curioso porque essa questão da integração antes era bem vista. Ter uma inserção no mercado, uma integração. Mas como está a relação com o demandador? É mais ou menos a mesma lógica dos canais de distribuição e comercialização. Eles existem porque é impossível para o produtor atingir maior número de consumidores se não ele não tem logística, estrutura. Então, às vezes, é interessante passar para o intermediário, porque ele vai conseguir acessar o mercado, fazer essa distribuição. É uma interdependência…

 
PA – Mas às vezes essa interdependência não leva à dependência total?

JD – Tem intermediários que fazem essa ponte da interdependência. Mas tem outros que vão nesse formato dos sistemas integrados, fazem os produtores dependerem dos insumos disponibilizados. E isso limita muito a atuação dos produtores, até em termos de desenvolvimento de produtos. As políticas públicas para esse público, em especial, foram fundamentais nesses últimos anos para promover inovação nas suas estruturas de produção e comercialização. Os circuitos integrados não geram muita mudança na produção. Mas até o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE, geram uma dependência, esses programas não deixam de funcionar como intermediários. A pergunta que eu coloco é: quais são as alternativas que os produtores têm além disso? A ideia desses programas é que os produtores se insiram no mercado, se tornem profissionais (os que ainda não são). E também atender outros circuitos de clientes. Porque senão não tem autonomia nenhuma, os produtores vão continuar dependentes… O problema é que ainda não apareceram propostas mais interessantes do que isso. Dos dois lados. Tanto do produtor quanto de quem não tem acesso a esses produtos. E isso gera dependência.

 
PA – Então a política pública é efetiva?

JD – Depende, não dá para generalizar. Da forma como ela é pensada, pode funcionar bem. Mas não funciona em todo lugar. A ideia é excelente, mas sempre precisamos nos preocupar com alternativas. A história do bolsa família, que é tão criticada. As pessoas dizem que quem recebe vai querer continuar recebendo para sempre… não é assim! O bolsa família é um mecanismo que permite acesso, dá possibilidades, permite outros avanços para a família. Essas duas políticas, em particular, PAA e PNAE, são fundamentais, mas não podem ser vistas como as únicas alternativas. Temos sempre que buscar outras possibilidades, considerando as diferenças regionais.

 

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