Pesquisadora fala sobre a importância de conservar as águas pantaneiras

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Texto originalmente publicado em: 25/03/09

 No Dia Mundial da Água, comemorado no último dia 22 de março, a ONU – Organização das Nações Unidas, selecionou como tema a ser debatido as “águas transfronteiriças”. O Pantanal brasileiro se localiza em uma bacia hidrográfica que envolve outros países sul-americanos.

Para explicar como está a conservação desta bacia e o que a Embrapa Pantanal tem feito para monitorar a qualidade dos rios, foi entrevistada a pesquisadora Débora Calheiros, que há 20 anos acompanha a situação deste precioso recurso natural na região.

Confira a entrevista na íntegra:

Qual é a situação hoje da BAP (Bacia do Alto Paraguai)?
 
A BAP faz fronteira com a Bolívia e o Paraguai e pertence à bacia do Prata, à qual se agregam a Argentina e o Uruguai. Estamos no começo desta grande bacia, uma das maiores áreas úmidas do mundo, formando o denominado Sistema Paraguai-Paraná de Áreas Úmidas. Ou seja, as ações humanas na parte alta da bacia podem afetar todo o sistema águas abaixo. Daí a enorme responsabilidade do Brasil, detentor de 80% da BAP em promover a sua conservação, com base no uso racional dos seus recursos naturais, além da responsabilidade em conservar o Pantanal Mato-grossense, considerado Patrimônio Nacional e Reserva da Biosfera. Aqui, bem perto de nós, temos a ligação transfronteiriça entre Brasil e Bolívia, via Canal do Tamengo.
 
A Embrapa Pantanal monitora essa bacia, por meio do Peld (Projeto Ecológico de Longa Duração) há quantos anos?

O grupo de Limnologia  (parte da biologia que trata das águas doces e de seus organismos, principalmente do ponto de vista ecológico) da Embrapa Pantanal  (Corumbá-MS), Unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa, vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, monitora o rio Paraguai e o canal do Tamengo, próximo à área urbana de Corumbá, há 20 anos.

Com base nesta experiência e na mesma perspectiva de se conhecer melhor este sistema ecológico complexo, elaboramos o Projeto Peld, financiado pelo CNPq, para um período de 10 anos (1999-2009), para ampliar a compreensão sobre o funcionamento hidro-ecológico de toda a BAP (MT/MS), além de determinar o grau de comprometimento de sua qualidade por meio de estudos ecotoxicológicos (contaminação por pesticidas e metais pesados) e pela avaliação do uso e ocupação do solo, em especial na parte alta da bacia, onde as atividades agropecuárias causam impactos ambientais aos rios formadores do Pantanal.

Qual era a situação no começo do monitoramento e quais os dados coletados mais recentes?

Em termos ecológicos o monitoramento do Peld de apenas 7 anos e com coletas semestrais (cheia e seca), que foi o que conseguimos realizar, não traz muitas respostas em termos de “antes” e “depois”… O que conseguimos neste período, foi constatar o comprometimento das principais sub-bacias pelo desmatamento, em especial nas áreas de planalto (em torno de 50% a 80%), a elevada concentração de material em suspensão que leva ao assoreamento dos rios, causada pelo mau uso do solo, em especial nos rios Miranda, Aquidauana e São Lourenço; observar as alterações no funcionamento hidro-ecológico dos rios formadores do Pantanal Mato-grossense  devido à implantação de barragens para a geração de energia hidrelétrica, detectar a contaminação das águas e sedimento por pesticidas utilizados nas lavouras de soja, algodão, cana de açúcar e milho nas áreas de transição entre planalto e planície pantaneira e o despejo de efluentes pela agroindústria e pelas cidades diretamente nos corpos d’água.

No monitoramento de 20 anos do rio Paraguai e canal do Tamengo, observamos ainda uma boa qualidade das águas, mas com risco maior de contaminação em especial no Canal do Tamengo, devido aos efluentes urbanos provenientes da Bolívia em conjunto com os de Corumbá-Ladário. No Brasil as obras do PAC de coleta e tratamento de esgotos contribuem para minimizar em muito o problema.

Como a questão transfronteiriça está em debate, o que cabe a cada país envolvido com a BAP para a conservação da bacia?

Como mencionado acima, o Brasil tem maior responsabilidade em conservar a BAP, por ter maior área e por se localizar na sua parte alta. O que fizermos de errado ou certo por aqui será refletido águas abaixo. Da forma como estamos afetando o pulso de inundação (assoreamento e implantação de hidrelétricas nos rios formadores da BAP) e contaminando os rios, podemos afetar cada vez mais o sistema físico e sua qualidade ambiental, o que se refletirá na biodiversidade como, por exemplo, na conservação dos estoques pesqueiros como recurso de importância social e econômica ao longo de todo sistema Paraguai-Paraná.

As áreas úmidas têm uma grande capacidade de “auto-depuração”, de limpeza de suas águas, mas a cada aumento do nível de impacto causado pelo homem, esta capacidade vai sendo comprometida e a degradação ambiental passa a vigorar, como no caso dos rios Taquari (MS), pelo assoreamento, e Cuiabá (MT), pela poluição.

Como a Embrapa Pantanal subsidia políticas públicas que venham a favorecer a conservação da BAP?

Com base em nossas pesquisas e na experiência acumulada ao longo desses 20 anos, geramos uma massa de dados e informações científicas que nos possibilitaram contribuir com qualidade na elaboração de pareceres técnicos sobre o Zoneamento Ecológico-Econômico do Mato Grosso do Sul e sobre o Plano Estadual de Recursos Hídricos do Mato Grosso do Sul,  por exemplo. Estamos promovendo também, ainda na fase de articulação inicial, uma discussão multi-institucional e multidisciplinar, com apoio de ONGs, Ibama, Semas (MT/MS) e comunidade acadêmica,  sobre o problema potencial de alteração do pulso de inundação de todo o Pantanal causado pela proliferação de hidrelétricas na BAP, que está sendo realizada sem planejamento e sem uma avaliação técnica criteriosa sobre os impactos conjunto de todos os empreendimentos previstos pela Aneel.

Atuamos também em vários outros pareceres técnicos quanto a Estudos de Impacto Ambiental de empreendimentos, Avaliação Ambiental Estratégica, Termos de Ajustamento de Conduta e outras demandas relacionadas à qualidade ambiental e conservação de recursos hídricos, por solicitação dos Ministérios Públicos Estadual e Federal, bem como do Ibama e Semac-MS.
Atuamos também no Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Miranda, como membros da sociedade civil de instituições de pesquisa e ensino. Este é o primeiro Comitê de Bacia da BAP e do Mato Grosso do Sul, um fórum participativo e deliberativo ligado diretamente ao governo estadual, onde podemos repassar a base técnica gerada em projeto específico que realizamos nesta sub-bacia sobre a elaboração de indicadores ambientais de qualidade de uma bacia hidrográfica, como uma ferramenta de planejamento e gestão.

Além disso, fazemos parte do Conselho da Reserva da Biosfera do Pantanal Mato-grossense, também como outro fórum com ampla representação da comunidade regional, também como representantes de instituições de ensino e pesquisa, outro órgão consultivo e deliberativo, ligado diretamente ao MMA (Ministério do Meio Ambiente), com a função de atuar na conservação da região.
Somos membros também do CNZU (Comitê Nacional de Zonas Úmidas), ligado ao MMA, com a mesma proposta de discutir e gerar demandas para o governo, visando a conservação das áreas úmidas do país.

Nossas informações geradas sobre ecologia de ecossistemas aquáticos pantaneiros estão sendo, então, utilizadas como base de discussão e de tomada de decisão, contribuindo indiretamente para a conservação de  toda a BAP e dos seus recursos naturais, em especial, pesqueiros e turísticos, de grande importância social e econômica para a região.

A Embrapa Pantanal repassa informações aos outros países envolvidos com a BAP para que eles tenham subsídios para incentivar a conservação?
 
Poucas são as iniciativas oficiais realizadas neste sentido diretamente pelos governos. A grande maioria das iniciativas é realizada pela sociedade civil organizada (ONGs), em especial da ONG Ecoa, que articula a Coalizão Rios Vivos, que congrega instituições de toda a bacia do Prata, e a Rede Pantanal, que atua na BAP, incluindo Bolívia e Paraguai. A Coalizão Rios Vivos, por meio da Ecoa, estimulou a oficialização do Sistema Paraguai-Paraná de Áreas Úmidas em nível nacional e internacional, dando bases para a criação de políticas públicas conjuntas para a toda a região.

Nesses 20 anos, sempre fomos parceiros dessas organizações repassando informações, participando de discussões técnicas e de projetos de parceria. Um exemplo importante foi nossa contribuição para as discussões sobre o EIA (Estudo de Impacto Ambiental) do Projeto da Hidrovia Paraguai-Paraná, que em 1996 foi barrado pelo governo brasileiro devido aos impactos ambientais que causaria na BAP e à jusante, em especial na Argentina.

Atuamos também no Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento Sustentável e Gestão Integrada da Bacia do Rio Apa, organizado pela Câmara Técnica de Gestão de Recursos Hídricos Transfronteiriços do Conselho Nacional de Recursos Hídricos/MMA. 
 
Entre todos os riscos da BAP, qual seria o mais preocupante na atualidade?
 
Várias são as ameaças à BAP e ao Pantanal, sem respeito à conservação dos seus processos ecológicos, como rege a Constituição Brasileira, ao denominar a região como Patrimônio Nacional.  Em especial são as ameaças resultantes do desrespeito à legislação ambiental (mau uso do solo, desmatamento, etc), causando o assoreamento dos rios, a contaminação e a poluição. Soma-se a isso a presença de espécies invasoras, projetos de industrialização da região por meio de indústrias de alto potencial poluidor, a expansão do agronegócio com base em extensas monoculturas, a produção de carvão ilegal…

Mas dentre todos esses riscos o mais preocupante é realmente a expansão, sem qualquer avaliação conjunta, sem qualquer planejamento, da implantação de hidrelétricas nos rios formadores do Pantanal. A soma dos impactos conjuntos de todos os 110 empreendimentos previstos pode ter alto potencial de afetar o pulso de inundação dos rios da região, de alterar o ciclo das águas de cheias e secas periódicas, que é o fenômeno natural mais importante que rege o funcionamento ecológico do Pantanal.
 
Se não analisarmos esse problema com seriedade estaremos desrespeitando a Constituição Brasileira, que considera o Pantanal Mato-grossense como Patrimônio Nacional (Cap. VI, Art. 225) e preconiza:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público:
– preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;…
 
§ 4º – A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.

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