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Um Brasil mais quente

25 minutos de leitura

Texto originalmente publicado em: 18/12/06

Cidades que desaparecem sob o mar e a Amazônia transformada em deserto não é o que nos espera no futuro imediato. Mas existem, sim, riscos de elevação da temperatura média anual nas próximas décadas em toda a América do Sul. Podem até mesmo surgir áreas quase desérticas no interior do Nordeste, de acordo com os cenários sobre o clima do futuro usando pela primeira vez modelos climáticos regionais, desenvolvidos no Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe). Desenha-se um Brasil menos tropical e úmido e mais quente e mais seco.

Essas transformações podem afetar a produção de energia elétrica, na medida em que a água dos rios e das represas evaporar mais rapidamente, e a saúde humana: doenças como malária e dengue poderiam se propagar mais intensamente sob um clima mais quente e úmido; já num clima mais quente e seco as doenças respiratórias é que poderiam se tornar mais comuns. A economia brasileira, em especial a agricultura, pode ganhar outro perfil. Estimativas anteriores, feitas com base em modelos globais, já haviam apontado para reduções progressivas nas safras de culturas agrícolas básicas como trigo, milho e café, cujas áreas de plantio tenderiam a deslocar-se para o sul do país à medida que o calor aumentasse.

Ao mesmo tempo ganha força uma vertente de pesquisa que alerta para a
necessidade de ações preventivas e para a urgência de sementes adaptadas a climas mais quentes como forma de evitar o desabastecimento da população. “Os cenários climáticos futuros devem ser vistos como matéria-prima para estudos mais aprofundados sobre os impactos das mudanças climáticas sobre a biodiversidade, a saúde, a agricultura e a economia”, diz José Antonio Marengo Orsini, meteorologista do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) do Inpe e coordenador desse trabalho. “Podem também embasar políticas públicas que procurem reduzir os prejuízos associados às mudanças do clima, por meio da redução de desmatamentos e da emissão de gases do efeito estufa.”

Até agora só era possível imaginar os impactos das mudanças climáticas no
Brasil por meio das projeções dos modelos globais. Feitos por instituições dos Estados Unidos ou da Europa, fornecem uma visão panorâmica de grande escala, com as médias das temperaturas continentais, não muito úteis para as avaliações de impactos climáticos regionais. Por lidarem com uma escala bem menor, os modelos regionais indicam, por exemplo, se pode haver variação no volume de água das bacias hidrográficas e assim prever problemas no abastecimento de cidades ou para a navegação. “É como se agora olhássemos o Brasil com uma lupa”, diz Marengo. Segundo Pedro Leite da Silva Dias, professor da Universidade de São Paulo (USP), modelos regionais como o do Inpe podem ser bastante úteis para entender processos climáticos específicos e tentar descobrir se a brisa marinha continuará chegando à cidade de São Paulo ou se vai mudar a freqüência de tempestades do Paraguai para o sul do Brasil.

Vulnerabilidade

Os gráficos e os mapas com as projeções de mudanças climáticas, que saem dos supercomputadores do CPTEC, indicam uma elevação de 2° a 3° Celsius (C) na temperatura média anual de quase toda a faixa litorânea e boa parte do interior do Brasil, enquanto em uma área ao norte do Amazonas equivalente ao estado de São Paulo o aquecimento pode chegar a 6°C. Essas projeções referem-se ao cenário otimista, que pressupõe o cumprimento integral das metas de redução de poluição do Protocolo de Kyoto. Nesse caso, tudo seria feito para evitar os danos do aquecimento global.

No outro extremo, o cenário pessimista pressupõe que nada seja feito ou nada funcione para deter o aquecimento global – e as emissões de gás carbônico, um dos principais agentes do aquecimento global, permaneceriam altas. Sob essa perspectiva mais sombria, de acordo com as projeções do Inpe, uma larga faixa que abrange as principais capitais do Brasil estaria sujeita a temperaturas médias anuais até 4°C mais altas. A maior parte do país estaria sujeita a uma temperatura média anual até 6°C mais alta e uma pequena faixa de terra ao norte do Amazonas poderia ir além e apresentar uma elevação de até 8°C em relação ao período de 1961 a 1990, adotado no mundo inteiro como ponto de partida dos modelos climáticos.

A quantidade e distribuição de chuva também devem se modificar, segundo as projeções do CPTEC/Inpe. Os dois cenários extremos – de baixa e de alta emissão de gás carbônico – sugerem que poderá chover menos tanto na Amazônia e no Centro-Oeste, prejudicando a sobrevivência da Floresta Amazônica e do Pantanal, que dependem da umidade, quanto na Região Nordeste. No Sul e Sudeste do Brasil e em pelo menos metade da Argentina a pluviosidade tenderia a aumentar, embora com uma menor contribuição da umidade vinda da Amazônia.

As primeiras projeções de clima futuro no Brasil usando modelos climáticos
regionais sugerem a possibilidade de eventos climáticos extremos mais
freqüentes, já indicados pelos modelos globais, embora não com tantos detalhes. Na prática: chuvas mais fortes e curtas que resultariam em temporais mais intensos que os de hoje ou, contrariamente, secas mais longas, que poderiam transformar o semi-árido do interior do Nordeste em uma região quase árida. Uma média de 16 modelos globais do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), por sinal, já havia indicado uma redução de 40% na precipitação da Região Nordeste do Brasil.

Chuvas atrasadas

De acordo com esse novo estudo, as chuvas poderiam se tornar mais raras
especialmente no inverno, quando a Amazônia estaria sujeita a temperaturas médias 4°C mais altas e o Sudeste, de 2° a 3°C, no cenário otimista. “Essa constatação é preocupante”, diz Marengo, “porque a primavera é o início da estação chuvosa em todo o Brasil”. Se de fato chover menos na primavera, as chuvas de verão, que começam no final de outubro no Sudeste e em dezembro no Norte, poderão atrasar dois a três meses e prejudicar a oferta de alimentos, já que são exatamente as primeiras águas do final de ano que marcam a hora de plantar arroz, feijão, milho, soja e trigo. A estiagem que deixou encalhados barcos no meio dos leitos dos rios secos e isolou quase 300 mil pessoas nos estados do Amazonas e do Pará no ano passado foi causada justamente por um atraso de dois meses na chegada das chuvas.

“A seca da Amazônia em 2005 representa um tipo de episódio climático extremo que pode se tornar mais freqüente na segunda metade do século XXI”, diz Marengo. Um estudo recente de que ele é um dos autores mostra que a mais grave seca da Amazônia no último século não deve ter sido causada pelo aquecimento global ou pelo desmatamento, como a princípio se alardeou, mas provavelmente resultou da sobreposição de águas e ventos mais quentes do oceano Atlântico ao norte e ao sul do equador – um raro fenômeno climático que ajuda a explicar também o furacão Katrina no sul dos Estados Unidos. “Os cenários dos modelos regionais que elaboramos podem estar no caminho certo, porque indicou a possibilidade de ocorrerem outros fenômenos similares a essa seca, que já aconteceu”, diz o pesquisador do Inpe, que trabalhou com as equipes de Tércio Ambrizzi, da USP, e Eneas Salati, da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), em colaboração com pesquisadores do Hadley Centre, Inglaterra. “Temos de nos preparar para essas situações extremas.”

Mas nada deverá mudar da noite para o dia. De acordo com os cálculos
preliminares da equipe do Inpe, a temperatura média deverá se alterar de modo lento e gradual até 2030, acompanhando uma curva suave – mais precisamente, o início de uma parábola, que representa o acúmulo de gás carbônico na atmosfera e deve refletir também o ritmo de aquecimento global. Só então é que devem começar as mudanças mais acentuadas, que devem culminar nesse quadro mais severo, de secas mais intensas no Norte e Nordeste e chuvas mais fortes no Sudeste e Sul, por volta de 2070 a 2100.

Até lá, pode-se ter apenas uma noção dos impactos das mudanças climáticas, com base nas projeções feitas por meio de modelos climáticos globais, que oferecem uma visão menos detalhada que as abordagens regionais – tanto a Argentina quanto o Peru já fizeram seus próprios modelos, apresentados em uma conferência realizada em 2005 em São Paulo, ainda que aplicado a áreas menores que o brasileiro. O derretimento das geleiras dos Andes deve acelerar e reduzir a quantidade de água nas casas dos moradores das capitais e das cidades mais altas do Peru e do Chile. Um dos modelos do IPCC sugere que a Floresta Amazônica possa se tornar uma vegetação mais baixa e menos densa – uma savana – por volta de 2040. Uma elevação de meio metro no nível do mar já bastaria para causar ressacas mais fortes e agravar a erosão costeira. “Os holandeses já estão reforçando os diques”, afirma Dias.

Claro: é impossível prever com exatidão o comportamento da temperatura, da pressão atmosférica, da umidade, da radiação solar e dos ventos de superfície e de altitude por meio das equações matemáticas que integram os modelos climáticos. Mesmo os cálculos sobre a variação da temperatura global passam por ajustes. O terceiro relatório do IPCC, elaborado a partir de imagens com uma resolução gráfica de 400 quilômetros quadrados, previa em 2001 que a temperatura média do Brasil subiria 1,6°C no cenário otimista e até 5,8°C no pessimista. O próximo relatório, a ser publicado em 2007, indica que o aquecimento pode ir de 2°C até 4,5°C, respectivamente, nos cenários de baixa ou de alta poluição.

REGIÃO NORTE

– Cenário otimista (baixas emissões de poluentes): Temperatura média anual de 3° a 5°C mais alta, umidade do ar até 15% mais baixa e atraso no início da estação chuvosa. Mais incêndios e redução no nível dos rios e no transporte de umidade para as regiões Sudeste e Sul.
– Cenário pessimista (altas emissões de poluentes): De 4° a 8°C mais quente, 15% a 20% mais seco e atraso da estação chuvosa.

REGIÃO NORDESTE

– Cenário otimista: Até 3°C mais quente e 15% mais seco. Redução no nível de água dos açudes e na produção agrícola.
– Cenário pessimista: De 2° a 4°C mais quente e até 20% mais seco.

REGIÃO CENTRO-OESTE

 – Cenário otimista: De 2° a 4°C mais quente, com impactos sobre a
biodiversidade, a agricultura e a saúde da população.
– Cenário pessimista: De 3° a 6°C mais quente

REGIÃO SUDESTE

– Cenário otimista: De 2° a 3°C mais quente. Extremos de chuvas, de enchentes e de temperaturas mais intensos, com impactos na agricultura, na saúde da população e na geração de energia elétrica.
– Cenário pessimista: De 3° a 6°C mais quente. Chuvas e enchentes mais fortes.

REGIÃO SUL

– Cenário otimista: De 1° a 3°C mais quente, com extremos de chuva, enchentes e de temperatura.

– Cenário pessimista: De 2° a 4°C mais quente e de 5% a 10% mais chuvoso, com extremos de chuva, enchentes e temperaturas mais intensos.

Soja, mata e ventos

“Não podemos dizer se a precipitação na região Amazônica diminuirá 50% ou 80%, mas com certeza será menor”, diz. Só que mesmo mudanças sutis podem ser fatais. Dois estudos publicados este ano, um no Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) e outro na Earth Interactions, mostraram que as plantações mecanizadas de soja, ao transformarem a floresta em imensas áreas abertas, contribuem para deixar o clima da região mais quente por ampliar a quantidade de radiação solar absorvida pela terra e reduzir a circulação de água pelo solo e pela atmosfera. Monitoradas por meio de imagens de satélite, áreas desmatadas apresentam uma temperatura 3°C mais alta que a das florestas próximas. “Além de o clima se tornar mais quente”, diz Alexandre Oliveira, biólogo da USP, “o ciclo da água pode mudar, tornando o ambiente mais seco e diminuindo a circulação de umidade na atmosfera”. Nesse caso, os ventos da Amazônia que chegam ao Sul e Sudeste chegarão com menos umidade, agravando os efeitos da seca sobre o campo e as cidades.

“Agora precisamos aplicar os resultados”, diz Marengo, que contou com
financiamentos do Projeto de Conservação e Utilização Sustentável da Diversidade Biológica Brasileira (Probio) do Ministério do Meio Ambiente (MMA), do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e do Global Opportunity Fund (GOF) do governo inglês.

Marco Aurélio de Mello, do Inpe, começou a aplicar esse modelo regional para prever o impacto das mudanças climáticas sobre a agricultura brasileira. As conclusões a que está chegando apenas detalham as obtidas por meio dos modelos climáticos planetários. “As perdas serão inevitáveis”, conclui Hilton Silveira Pinto, diretor-associado do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Pesquisas do Cepagri e da Embrapa Informática com base nas projeções dos
modelos climáticos globais sugerem que o Brasil pode perder cerca de 25% da área com potencial para plantio de cafezais em Goiás, Minas Gerais e São Paulo, com  perdas estimadas em US$ 500 milhões por ano, se a temperatura subir 1°C. Três graus a mais e a área para plantio cairia para um terço da atual. Seis graus a mais na temperatura média anual, de acordo com as mais pessimistas projeções tanto dos modelos globais quanto, agora, dos regionais, implicam praticamente a extinção dos cafezais das terras paulistas e dos atuais estados produtores.

O café ganharia então as terras hoje mais frias do Paraná, de Santa Catarina
e do Rio Grande do Sul, até chegar à Argentina. Por sua vez, as plantações de trigo e de girassol do Sul tenderiam a se tornar inviáveis à medida que as
temperaturas subissem. Nos últimos dois anos a produção de trigo já caiu 50% – em  conseqüência o preço da farinha de trigo deve subir 25% em 2007.

Ovos sem casca

“Nos próximos 15 anos haverá alterações razoáveis no cenário agrícola do
país”, afirma Hilton Pinto, cuja equipe elaborou simulações também para outras culturas agrícolas: as plantações de arroz sofreriam perdas de 30% em São Paulo e na Bahia, as de feijão poderiam cair de 21% em São Paulo a 41% no Nordeste, e as de milho 16% em São Paulo e 71% no Nordeste apenas com 1°C a mais na temperatura média anual. 

Os animais também preocupam, porque igualmente se deixam abater quando o tempo esquenta: galinhas botam ovos sem casca ou morrem, leitoas abortam, leitões mais jovens morrem e as vacas produzem menos leite. Em uma amostra do que se pretende evitar, em uma onda de calor em setembro de 2004 a temperatura esteve 4°C acima do habitual durante alguns dias e causou prejuízos estimados em US$ 50 milhões somente no estado de São Paulo.

A perspectiva de tomarmos café da Argentina pode não ser apenas um desejo de vingança dos argentinos depois de perderem da seleção brasileira. “Definitivamente”, diz Hilton Pinto, “já está havendo um aumento da temperatura”. Segundo ele, desde 1890 até hoje as temperaturas mínimas subiram 2,7°C e as máximas 1,3°C em São Paulo, estado que gera 35% da receita agrícola nacional.

Outra indicação de que o tempo pode não estar disposto a esperar: por quatro anos seguidos, de 2001 a 2004, a produção de café no sul de Minas Gerais sofreu um baque porque a temperatura máxima passou dos 34°C. O calor mais intenso chegou em outubro e matou boa parte dos jovens e frágeis botões florais que dariam origem aos frutos. “É muito pouco provável que eventos climáticos como esse sejam devidos apenas à variabilidade climática natural”, comenta Dias, da USP. “Pode já ser um tênue sinal de aquecimento global no Brasil e dos impactos que possa causar”.

Foto de capa: Vivek Doshi via Unsplash

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