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China na América Latina: a próxima dona do interruptor

13 minutos de leitura
China na América Latina
  • A Ecoa acompanha instituições que financiam o desenvolvimento, como os investimentos da China, por entender que os recursos devem seguir parâmetros de proteção ambientais e sociais rígidos. 
  • Esses investimentos não devem financiar obras que degradam o ambiente e tragam problemas sociais.
  • Em fevereiro de 2021, publicamos o artigo “Investimento chinês em energia no Brasil”, por meio do qual compreendemos que o nicho mais visado pela China no país é o da geração de energia, principalmente hidrelétrica. 
  • 71% das empresas compradas pela China na América Latina entre 2017 e 2021 são no setor de eletricidade, segundo dados do Centro de Políticas de Desenvolvimento Global da Universidade de Boston.
  • Mais recentemente, estatais chinesas passaram a investir também na distribuição de energia. 

 

Paolo Benza, Folha de S. Paulo

De todas as empresas que a China comprou, inteira ou parcialmente, na América Latina entre 2017 e 2021 (por US$ 44,4 bilhões), 71% são do setor de eletricidade. O dado, que fala por si só, pertence ao Centro de Políticas de Desenvolvimento Global da Universidade de Boston. E atenção: a diferença em relação ao interesse que as corporações do resto dos países tinham no setor, que foi só de 7%, é abismal.

A nova aposta da China neste lado do mundo é bastante clara: tornar-se a dona da luz. Uma parte importante desse caminho já foi pavimentada graças a gastos multimilionários, pois, mais do que construir plantas ou redes do zero, os chineses preferem entrar com ativos consolidados. Para isso, aproveitaram os espaços deixados pelas empresas europeias –que agora priorizam outros mercados— e o declínio de empresas vinculadas ao escândalo de corrupção da Lava Jato.

Assim, a potência asiática transformou suas empresas estatais em compradores vorazes. Segundo a base de dados da BU, a China entrou no setor de eletricidade chileno com dez operações de M&A, outras dez no mexicano, três no peruano e nada menos que 112 no brasileiro. Isso apenas no setor de geração (a grande maioria é hidrelétrica). Outra história –a mais recente– está sendo escrita no último elo da cadeia: a distribuição.

China na América Latina: O negócio elétrico

A distribuição elétrica é, em termos simples, o negócio de conectar a luz ao usuário final. Está a cargo de empresas que compram energia de geradores e depois cobram a conta dos consumidores. No Chile, uma estatal chinesa comprou há três anos as operações de Chilquinta Distribuição e depois da Compañía General de Electricidad (CGE), a principal empresa do setor em seu país. Com isso, passou a controlar mais da metade da distribuição no mercado do sul. No Brasil, que tem um potencial elétrico gigantesco, estima-se que a participação chinesa em transmissão e distribuição tenha avançado para 12%.

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Mas o que parece ser uma estratégia aplicada como espelho em distintos países do continente chegou ao Peru em seu auge, em abril. Lá, a estatal China Southern Power Grid anunciou a compra dos ativos da italiana Enel Distribuição, o que significa que 100% da distribuição de eletricidade na região metropolitana de Lima (10 milhões de habitantes) e mais da metade do território do país estará nas mãos de empresas controladas pelo Partido Comunista Chinês. O outro distribuidor da capital peruana, Luz del Sur, pertence à estatal chinesa Yangtze Power desde 2019.

O que está por trás desse “apetite energético”? Primeiro, uma inteligente visão financeira. Na maioria dos países, o negócio de fornecer eletricidade aos lares e pequenas empresas (conhecido como mercado regulado) é rentável quase que por natureza. Não há concorrência para a venda final, porque as zonas de distribuição são separadas, e o preço é definido pelo órgão supervisor para garantir uma margem de lucro para a empresa. Raramente as pessoas reduzem seu consumo de energia.

Apetite energético

Portanto, faz todo o sentido que os empréstimos de governo a governo (a estratégia que a China vinha usando para ampliar sua influência na América Latina) tenham passado para segundo plano frente aos investimentos diretos em empresas de eletricidade. Esses oferecem um panorama de retorno mais do que duvidoso. De fato, muitos países do sul global estão em risco de default e a China é seu primeiro credor. Por outro lado, em agosto de 2022, as ações de empresas de eletricidade no Peru eram uma das poucas alternativas de investimento financeiro (4 de 267) que rendiam mais do que a inflação.

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Mas os investimentos em eletricidade não são fáceis. Para comprar uma represa ou uma distribuidora, é necessário muito dinheiro —que as estatais chinesas acumularam durante anos de bonança econômica. O ponto é que, depois de pagamentos de dez dígitos em dólares, dificilmente estarão dispostas a só sentar e esperar que os lucros cheguem. No Peru, especificamente, há riscos claros no médio prazo. Quem poderá dizer não a uma exigência da potência asiática?

Quando a Yangtze Power comprou a Luz del Sur, o regulador peruano de concorrência, Indecopi, pôs como condição que a distribuidora não poderia comprar energia de geradoras vinculadas ao seu grupo econômico sem uma licitação supervisionada. Isso porque sua matriz, a China Three Gorges, também é dona da terceira maior usina hidrelétrica do país (Chaglla) e de outras menores. Provavelmente, o Indecopi colocará uma condição similar para a compra da Enel. O detalhe? Essa proibição se aplica somente até 2030.

Investimentos gigantescos

Até lá, duas coisas acontecerão: expirarão alguns acordos de fornecimento que a Luz del Sur tem com geradoras para obter a energia que distribui ao mercado regulado e também os contratos de mais de 1.500 clientes livres com distintos provedores de eletricidade. No Peru, os clientes livres são empresas de alto consumo (mineradoras, fábricas de cimento, fábricas, shoppings etc.) que não são obrigadas a se conectar à rede geral. Podem comprar energia, se lhes for conveniente, diretamente das geradoras.

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Além disso –como detalhou a revista Semana Econômica, a Three Gorges e a Yangtze Power têm um forte plano a curto prazo para aumentar sua capacidade de geração e triplicar sua participação nesse segmento. E espera-se que grandes empresas concorrentes, como Kallpa, vendam e saiam do país. Uma reconfiguração do setor está chegando e os chineses têm as fichas bem posicionadas para aproveitá-la. Eles têm uma aspiração monopolista?

O grande risco é que, a partir de 2030, a Luz del Sur compre sem filtros das hidrelétricas chinesas e, assim, feche parte do mercado regulado às demais geradoras. Se decidir se unir com a nova dona da Enel (cuja matriz, no fim, é controlada pelo próprio governo), o fechamento seria extremo. Isso também lhes daria uma posição muito mais forte para “roubar” os clientes livres. No pior dos casos, isso poderia desaparecer com as fontes de geração energética que não estão em mãos chinesas.

China na América Latina: Atores do mercado de eletricidade

Para evitar esses riscos, que são graves, o mercado de eletricidade é separado entre quem produz a energia, quem a transporta e quem a conecta ao usuário. A operação de empresas chinesas, tanto na geração quanto na distribuição, é algo que não se deveria permitir desde o início no Peru. E hoje, que o Indecopi tem o poder de impedir que a China Southern Power Grid adquira a Enel, deve fazê-lo.

Porque a realidade é que o planejamento centralizado, com concorrência “de mentirinha” e tratamento favorável às empresas estatais, está no DNA das empresas públicas chinesas. Embora a China não opere um sistema econômico comunista no sentido acadêmico do termo, as matrizes e suas subsidiárias se alinham –porque são as mesmas– à estratégia do PC chinês. E, assim como nos séculos passados as corporações britânicas e estadunidenses exportaram o capitalismo para o mundo, é de se esperar que as empresas da potência asiática também tentem operar na América Latina com sua própria lógica, padrões e práticas.

No fim, o grande risco é acabar cedendo o controle quase total do interruptor de luz a uma potência global, cujas empresas estatais operam hoje como carros-chefe de seu modelo econômico e de suas ambições geopolíticas. Que capacidade de negociação terão as instituições dos países latino-americanos em tal cenário –que não parece tão distante, se olharmos o Peru como um paradigma da região– para defender seus interesses nacionais ou enfrentar a China?

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