Complexo do Rio Madeira seria embrião de megaprojeto de infra para exportação

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Santo Ant™nio Energia/JULHO/2010 - Vista aŽrea - Rio Madeira - jusante de Porto Velho

Em processo de avaliação, as duas hidrelétricas que compõem o complexo são uma aposta alta do governo, que pode expandir o projeto com hidrovia rumo ao Pacífico. Projeto reascende debate sobre custos econômico, socioambiental e do modelo de desenvolvimento do Norte do país.

SÃO PAULO – A construção de duas usinas hidrelétricas no rio Madeira, no trecho entre as cidades de Porto Velho e Abunã, em Rondônia, tem sido considerada, junto com o projeto da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, a grande aposta do governo brasileiro para o atendimento do aumento da demanda de energia no país nos próximos dez anos. Consta inclusive do programa de governo da candidatura Lula, que afirma que um possível segundo mandato deverá “licitar e dar início à construção das hidrelétricas do Rio Madeira e Belo Monte, com respeito às normas ambientais”.

São exatamente as normas ambientais que, neste momento, depois de um longo processo de idas e vindas do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do projeto entre as empresas propositoras – Furnas e Norberto Odebrecht – e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), devem passar por nova bateria de análises por parte da sociedade civil antes que seja aprovada a licença prévia que bate o martelo quanto à viabilidade ambiental do complexo.

Apresentado pelas empresas ao Ibama em abril deste ano, o EIA, que já tinha sido rejeitado previamente por outras três vezes, teve que ser complementado em vários aspectos e tópicos, como a sedimentação que será gerada pelas barragens, a quantidade e os impactos do mercúrio existente no leito do rio, quais as espécies animais e vegetais endêmicas presentes na região e no rio, entre outros.

No último dia 11, o Ibama finalmente aprovou a qualidade do EIA, o que possibilita iniciar o processo de audiências públicas (que serão realizadas pelo menos nos municípios de Porto Velho, Abunã e Ji-Paraná, em Rondonia), passo anterior à licença prévia.

Apesar da aprovação da qualidade do Estudo, no entanto, vários questionamentos do Ibama não foram respondidos. Ao pedido de maior detalhamento dos processos de sedimentação, segundo o relatório do próprio Ibama “a empresa alegou que não poderia apresentar os gráficos dos estudos de remanso com base no prognóstico de sedimentos e vida útil dos empreendimentos sob o argumento de que os resultados da modelagem hidrossedimentológica – espacialização de sedimentos – do rio Madeira entre as confluências com os rios Beni e Jamari deveriam ser usados de forma qualitativa, pois os resultados foram gerados exclusivamente para identificação de tendências com significativos graus de incerteza”.

Quanto ao pedido de estudo mais aprofundado sobre a população de peixes do rio, o relatório do Ibama afirma que “em reunião prévia, a empresa apresentou a preocupação quanto à dificuldade técnica de realizar tais amostras, colocando em perigo a segurança dos trabalhadores. O Ibama considerou tal observação relevante e concordou com a sua não realização”.

Sobre os impactos das usinas nas atividades econômicas e na vida de ribeirinhos e demais atingidos, o Ibama diz que “o item é considerado parcialmente atendido, porque a dinâmica de utilização das várzeas não foi detalhada, sendo exposta de modo estatístico e sem a pertinente e adequada caracterização dessas populações”. Segundo o órgão, a previsão é que Jirau atinja 1.087 pessoas, sendo 700 na área urbana, e Santo Antônio 1.762 pessoas, sendo 400 na área urbana (segundo o Movimento dos Atingidos por Barragens, que contesta os dados oficiais, esse número é superior a 5 mil pessoas).

O relatório do Ibama também aponta que não há critérios e medidas de remanejamento e ressarcimento específicos para a população que ocupa e/ou utiliza as várzeas. Segundo Norma Villela, superintendente de Meio Ambiente de Furnas, no entanto, este seria um aspecto a ser definido em um estágio posterior.

Por fim, ficou sem solução o problema de alagamento de um trecho da área tombada da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré – considerado o mais importante patrimônio histórico de Rondônia -, mas o Ibama considerou que nem este nem as demais deficiências do EIA seriam um impedimento à sua disponibilização e à convocação das Audiências Públicas.

Custos

No formato em que vem sendo trabalhado no momento, o Complexo Hidrelétrico do rio Madeira prevê a geração de 3.150 megawatts pela Usina Hidrelétrica (UHE) Santo Antônio – obra que seria construída nas cercanias de Porto Velho -, e de 3.300 pela UHE Jirau, projetada na região de Abunã, próximo à fronteira com a Bolívia. Segundo Furnas, com a construção de linhas de transmissão para o Acre, Amazonas e Norte do Mato Grosso, esta energia será adicionada ao Sistema Interligado Brasileiro e deverá atender o país como um todo.

Para os empreendedores, um dos diferenciais do projeto em relação a outros de porte similar é o tipo das turbinas que serão utilizadas (88 no total, 44 em cada hidrelétrica): ao invés de funcionarem com a força da queda das águas, as turbinas do Madeira, conhecidas como bulbo, operarão no fundo do rio com a pressão da correnteza, o que diminui a necessidade de alagamentos (a barragem de Santo Antonio terá 271 km2 e a de Jirau, 258 km2). Este modelo tem sido usado com sucesso em cinco hidrelétricas no rio Danúbio, na Alemanha, mas a maior delas gera apenas 328 MW/ano. Usinas do porte do Madeira serão uma experiência inédita, o que tem gerado críticas entre alguns especialistas da área energética quanto a sua viabilidade e aos riscos econômicos que representariam para o país.

Quanto aos custos do projeto, existem controvérsias. De acordo com Furnas, o custo da obra ficaria em R$ 20 bilhões, mas cálculos da consultoria independente Excelência Energética, publicados pela revista Brasil Energia em maio passado, elevam este valor para R$ 21,7 bilhões. Já uma análise baseada no custo de US$ 2 mil o KW/h praticado na geração de energia na Amazônia, elaborada por especialistas da Universidade Federal de Rondônia, aponta que a obra poderá chegar a R$ 28,3 bilhões.

Também sobre o custo da energia há discordâncias. Segundo Furnas, a geração da eletricidade do Complexo giraria entre R$ 50,07/MWh e R$ 56,10/ MWh. Segundo a Brasil Energia, porém, levando-se em conta a Taxa Interna de Retorno (TIR) – os juros cobrados pelos financiadores sobre os empréstimos à obra – estipulada pela Eletrobrás em 12%, o custo subiria para até R$133,80/MWh. Entretanto, o TIR praticado nos últimos leilões de energia pelos investidores privados tem sido de 15%, ou seja, com esses juros o custo da energia pode variar de R$150,20/MWh a R$150,40/MWh.

“Ao se considerar dados mais realistas, os valores da energia gerada pelo Complexo Madeira serão maiores do que até o momento se tem conhecimento; ao se internalizar os impactos sociais e ambientais nos custos das obras, os valores da energia serão proibitivos. Assim, o preço final desta energia para o consumidor será muito alto”, pondera o professor da Universidade Federal de Rondônia, Artur Moret, doutor em Planejamento Energético.

Vôos mais altos

Apesar de não estar explícito no projeto hidrelétrico neste momento, desde a sua concepção o Complexo Madeira previu muito mais do que a construção de duas usinas de geração de energia.

Como parte importante dos projetos da Iniciativa para a Integração de Infraestrutura Regional da América do Sul (IIRSA, um consórcio inter-Estados que pretende implementar grandes obras de transporte e comunicação no Cone Sul), o Complexo Madeira previu desde o início, além das usinas de Santo Antonio e Jirau, a construção de uma terceira, binacional, na fronteira boliviana, e de outras duas na própria Bolívia.

O objetivo destas obras seria, muito além da energia gerada, a possibilidade de construção de uma grande hidrovia, a única maneira de viabilizar o eixo Norte-Sul (Orinoco-Amazonas-Plata) da IIRSA. Ou seja, as cinco usinas cobrirão com água as cerca de 19 corredeiras do Madeira (Brasil) e os obstáculos dos rios Mamoré (fronteira) e Beni (Bolivia), o que, com a construção das devidas eclusas, tornará navegáveis os 4.200 km até o território peruano, saída para o oceano Pacífico.

Segundo Norma Villela, superintendente de Meio Ambiente de Furnas, apesar de o EIA prever a possibilidade de construção de eclusas e de um canal de navegação entre Santo Antonio e Jirau, a expansão do projeto atual não consta do Estudo por depender de uma decisão dos governos brasileiro e boliviano. Tanto que a avaliação dos impactos ambientais se restringiu ao trecho do Madeira que abrange apenas cerca de 12 km a jusante de Santo Antonio e 5 km a montante de Jiarau.

De acordo com o hidrólogo Jorge Molina, presidente do Instituto Nacional de Hidrologia da Bolívia, no entanto, em abril de 2004 a Construtora Noberto Odebrecht solicitou à Superintendência de Eletricidade da Bolívia dois licenciamentos provisórios para estudos de viabilidade de hidrelétricas nos rios Mamoré e Beni. O pedido foi negado sob o argumento de que a questão deverá ser tratada em termos de um acordo bilateral.

Em um seminário Internacional de cofinanciamento promovido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Corporação Andina de Fomento (CAF) em agosto de 2003, os objetivos principais do Complexo foram expostos como sendo a integração de infra-estrutura energética e de transporte Brasil, Bolívia e Peru, e a instalação de parques industriais (agronegócio, mineral, naval, de base) em uma região considerada de pouca densidade populacional.

Em outras palavras, o projeto prevê a facilitação do escoamento das commodities brasileiras produzidas no Centroeste e Norte do Brasil (soja, madeira, minérios, outros grãos, etc) via Peru para os países da Ásia-Pacífico, o que, segundo o BNDS/CAF, levaria a um aumento de 25 milhões de toneladas/ano da produção agrícola nas duas regiões, reduziria os custos de produção e melhoraria o saldo da balança comercial pelo aumento das exportações.

Discussão de modelo

A construção de infraestruturas para facilitar a produção e o escoamento de bens primários, apregoada pelos governos locais e Federal, por instituições financeiras e pelo setor empresarial como um passo decisivo para o progresso do Norte do Brasil, tem sido criticada por vários institutos de pesquisa, ONGs e movimentos sociais.

A insistência dos países sul-americanos em apostar na exploração e exportação de bens primários é, segundo estas organizações, um fator de fragilização das economias e causa de uma deterioração sócio-ambiental extremamente cara.

Assim, o crescimento do potencial agropecuário na região é visto com preocupação até por apoiadores do projeto, como o deputado federal Eduardo Valverde (PT-RO), que afirma temer pela desagregação dos agricultores atingidos pelo Complexo e pela sua substituição pelo agronegócio, um dos principais vetores do desmatamento na Amazônia.

Opositores ferrenhos, organizações como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o Fórum de Debates de Energia de Rondônia (Foren), a Organização dos Seringueiros de Rondônia (OSR), a Rede GTA, entre outras, tem articulado uma forte campanha contra as hidrelétricas com base em questionamentos sobre a lógica implícita nas priorizações de investimentos, os setores e atores beneficiados e rebaixados pelo Complexo, o modelo econômico e a sustentabilidade sócio-ambiental, os conflitos sociais presentes vinculados e os conflitos potenciais, e a representação político-institucional dessa estrutura de interesses.

Enquanto o embate ideológico, que acabou permeando o debate sobre o modelo de desenvolvimento regional, tem esquentado os ânimos de defensores e opositores do projeto em Porto Velho, nas ruas, o que prevalece entre a população mais pobre é o terror da repetição da catástrofe social que foi a construção da hidrelétrica de Samuel, no rio Jamari, na década de 1980. Segundo o MAB, a obra foi responsável pela criação de grandes bolsões de miséria na periferia de Porto Velho ao ter ignorado direitos e negado assistência a cerca de 650 famílias de atingidos.

“A gente vivia da roça, da pesca e da caça. Quando começaram a construir Samuel, alguns de nós receberam um terreno de 16×15 m2 no que hoje é o município de Candeias (Grande Porto Velho). Mas aqui tinha que comprar tudo, água, luz, comida. Isso para nós, que não tínhamos costume de pagar por nada, foi o inferno. Eu ainda consegui um emprego na obra como mateiro, porque conhecia muito bem a região, mas depois fui demitido. Os empregos prometidos pelas hidrelétricas nunca são para nós, e nunca duram muito. Depois, é só desespero”, conta Arisvaldo da Costa, atingido de Samuel.

Outro indício de que as populações mais frágeis poderão sofrer impactos irreversíveis, pondera o coordenador estadual do CIMI, Valmir Bavaresco, é que várias comunidades indígenas em situação de isolamento e risco na região foram varridas do mapa da Funai. Ou seja, a indicação de sua existência foi retirada dos registros do órgão este ano. Segundo Bavaresco, sete Terras Indígenas serão afetadas pelas obras (principalmente pelo impacto sobre a população de peixes).

Iremar Ferreira, coordenador do Foren, calcula que, entre ribeirinhos e moradores de Altamira, o numero de atingidos ultrapassa 5 mil. Isso sem contar os garimpeiros que trabalham no rio e que serão inviabilizados pelas hidrelétricas. “Será mesmo que o custo do complexo madeira é sustentável?”, questiona.

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