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Irrespirável

5 minutos de leitura

Texto originalmente publicado em setembro de 2007

Por Marcelo Leite*

Se você andava achando impossível respirar depois de quase dois meses sem chuva em São Paulo, ou coisa semelhante em Ribeirão Preto, ou em Cuiabá, ou se não aguenta mais assistir a queimadas nos parques nacionais e na beira das rodovias, você ainda não viu nada. Experimente ler “A Estrada“, de Cormac McCarthy, para saber o que “é bom para a tosse”.

Cabe alertar que não se trata do melhor livro do grande McCarthy. Sua trilogia da fronteira, aberta com “Todos os Belos Cavalos”, ainda ganha (embora um sábio garanta que “Blood Meridian” – aparentemente sem edição nacional – ultrapassa a todos). De qualquer modo, “A Estrada” ganhou o Pulitzer de 2007 e, sendo um McCarthy, por definição deve ser lido.

Prepare-se. É uma viagem ruim. “O homem” e “o menino”, seu filho, perambulam por um mundo pós-hecatombe, recolhendo as migalhas de um tempo ido, sem volta, sem esperança, sem horizontes. Só cinzas, fumaça, névoa, fome e frio.

A época é indefinida, assim como a catástrofe que os pôs em marcha. Muita coisa na descrição sombria do romance sugere um “inverno nuclear”, pesadelo delineado nos anos 1980, entre outros, por Carl Sagan: após um conflito atômico mundial, as explosões lançariam tantos detritos e poeira na atmosfera que boa parte da radiação solar ficaria impedida de chegar à superfície do planeta, enregelando a biosfera.

O homem e o menino cruzam vários bosques e matas calcinadas, porém.

Não é de todo implausível que um aquecimento global fora de controle resulte em incêndios florestais de escala continental, tapando o céu com fuligem. Basta ver o que poucas semanas sem chuva tem feito com a vegetação, por aqui, em matéria de inflamabilidade, neste ano de 2007 recordista de queimadas.

Como se isso importasse alguma coisa para o livro. De ficção científica ele nada tem, ou tem muito pouco, e cobrar-lhe coerência com modelos climáticos seria uma alternativa, mas não uma solução. Nem por isso o homem e o filho do homem passariam a respirar aliviados.

A certa altura de sua jornada sem meta, o leitor se percebe percorrendo as páginas em agonia solidária, como se também ele levasse apertada a máscara de trapos sobre boca e nariz, e o corpo coberto de andrajos fedorentos.

Não tem saída a não ser seguir adiante, na certeza de que encontrará pela frente, seguida e invariavelmente, só canibais, cadáveres e moribundos. Cada vez mais gelada e apavorante, a narrativa prossegue.

Assim como o homem e o menino topam aqui e ali com despensas ainda não saqueadas, o leitor também se depara ao longo do livro com vestígios teimosos de humanidade nos dois.

O verdadeiro personagem do romance é o vínculo entre eles, o apego tenaz a uma busca conjunta de felicidade – àquela altura possível só na imaginação, num futuro de puro desejo – que segrega os derradeiros fios de reciprocidade e altruísmo.

O elo mais sólido, na cadeia que, todos sabem, terminará mal, é o menino. A fortaleza, a resolução e a coragem do pai de nada valeriam, para sua sobrevivência como pessoas, sem as lágrimas piedosas do filho, de seus silêncios enojados, do risco permanente de o sofrimento alheio lhe retirar as forças para continuar vivendo.

O pai, nesse mundo sem luz ou calor, é filho do menino, e só se liberta em seus braços, mais na esperança do que na certeza de que ele prosseguirá.

E vamos todos respirando, sufocados – pior que nunca.

*Marcelo Leite é autor de “Promessas do Genoma” (Editora da Unesp, 2007) e de “Clones Demais” e “O Resgate das Cobaias”, da série de ficção infanto-juvenil Ciência em Dia (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (http://www.cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br.

Foto de Capa: unsplash-logoAnna Popović

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